São Paulo, quinta-feira, 5 de maio de 1994
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A revisão exclusiva

é um projeto político de baixíssima viabilidade

MAILSON DA NÓBREGA

Os riscos da assembléia
A defesa pela Folha de uma assembléia revisora exclusiva desdobra-se em dois aspectos: a necessidade de revisar a Constituição e a maneira de fazê-lo.
Quanto ao primeiro, o jornal se junta à maioria e antecipa o aumento das aspirações por um texto constitucional moderno, registrando uma vez mais sua grande marca, a de posicionar-se sobre temas de elevado interesse nacional.
Relativamente ao segundo, parece-me que a assembléia exclusiva é, neste momento, inconveniente, além de politicamente inviável.
Mesmo que a tese apoiada pelo jornal não seja a vencedora, sua discussão ampliará a percepção de que "não haverá estabilização econômica duradoura e amadurecimento político de fato enquanto vigorar o atual texto constitucional, que tornou o Estado virtualmente inviável e consagrou um sistema político repleto de aberrações", como assinalado no editorial de 28/04.
Os que teimam em apoiar as regras e as idéias atrasadas da presente Carta constituem um grupo minguante, formado pelo corporativismo cartorial.
No governo, são os funcionários de certas empresas estatais, que defendem seus interesses sob o envelhecido e mal invocado verniz da soberania nacional.
No empresariado, há muitos. Os mais notórios têm sido os de visão acanhada, viúvas da intervenção estatal paternalista e do subsídio creditício, representados no Congresso pela retrógrada bancada ruralista.
Há também os que acreditam, como os pais da "Constituição cidadã", que o aumento do bem-estar e a distribuição melhor da renda independem do trabalho e do aumento da produtividade. Acham que podem produzir a felicidade com alguns artigos a mais.
Por exemplo, os constituintes de 1988 prometeram o céu para os aposentados. Desde então, as despesas com benefícios previdenciários saltaram de US$ 9 bilhões para US$ 24 bilhões (mais 167%), enquanto as receitas passaram de US$ 15,5 bilhões para US$ 22,5 bilhões (mais 45%). O desequilíbrio macroeconômico resultante alimentou o processo inflacionário, corroeu o valor das aposentadorias e transferiu mais renda para os ricos, aumentando a pobreza.
O desastroso texto de 1988 e o fracasso da revisão são em grande parte o resultado da fragmentação política. No Congresso, prevalece a força das bancadas e não a sensatez de um sistema partidário decente. Invertebrado, o Parlamento cuida da repartição irresponsável dos recursos entre grupos de interesse, entendendo legítimo colocar o Orçamento a serviço das bases eleitorais.
Esse caos não deriva de má qualidade da representação parlamentar, mas dos defeitos do sistema político: desequilíbrio regional na distribuição das cadeiras, pouquíssimos partidos dignos desse nome e ausência de regras adequadas de disciplina e fidelidade. É baixa a capacidade de decidir sobre questões complexas e alta a suscetibilidade a pressões das minorias.
Em 1988 e agora, o Executivo não dispunha de base parlamentar estável, tendo pálida ou nenhuma participação nos trabalhos. Em qualquer país, as grandes decisões costumam nascer de projetos do Executivo, que dispõe de informações, pessoal especializado e maior capacidade de articular sua discussão. É quase um suicídio fazer ou revisar uma Constituição na vigente situação, especialmente quando o Congresso não é cobrado pelos desastres que provoca. No caso da revisão, tem sido pior: parte do Executivo apóia teses dos "contras".
Se as elites políticas são as mesmas, a estrutura corporativa da sociedade não muda e os vícios da organização do sistema permanecem, as causas do fracasso continuarão. A revisão exclusiva pode ser pior. A proibição de renovar os mandatos dos revisores não os tornaria independentes, como se tem dito. Ao contrário: sem ter que responder por seus atos na vida política futura, tenderiam a multiplicar o vigente potencial de irresponsabilidade social. As corporações atuariam da mesma maneira.
A revisão exclusiva é, além disso, um projeto político de baixíssima viabilidade, como a própria Folha reconhece. Os parlamentares dificilmente aprovariam a criação de um poder paralelo, com alguma sorte (para nós) capaz de eliminar os desequilíbrios de representação, criar incentivos ao funcionamento dos partidos e inibir a ação fisiológica e corporativista. Seria ferir de morte a possibilidade de renovar muitos mandatos.
A proposta vale se amplificar a percepção da sociedade sobre as disfunções da Constituição. O risco é servir de arma protelatória pelos "contras". Melhor seria retomar, pois, a revisão em 1995 com quórum reduzido e votação unicameral como agora.
O próximo presidente da República, com a força da legitimidade renovada e o prestígio nascido de uma eleição plebiscitária, pode obter melhoras no texto, se entender que sem isso seu governo reeditará o fracasso dos últimos tempos. Neste caso, estar-se-iam mudando as condições prevalecentes em 1988 e 1994. Não haveria, assim, necessidade da assembléia revisora exclusiva nem de suas complicações e custos.
Ambas as saídas enfrentarão óbices jurídicos. Se houver uma saída, a retomada da revisão pelo Congresso parece oferecer menores riscos.

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