São Paulo, sexta-feira, 6 de maio de 1994
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E sobre cara que morreu na véspera?

CLÁUDIO WEBER ABRAMO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ao assistir o desempenho da imprensa e dos protagonistas principais envolvidos nos acontecimentos do GP de Imola, algumas reflexões vêm à mente. A primeira diz respeito a uma omissão ininteligível: com exceção do ex-piloto Nélson Piquet (cujas opiniões foram devidamente escamoteadas, a começar do Grande Irmão Global, mas foram retratadas na TV Manchete e receberam destaque no "Roda Viva" da TV Cultura, na segunda-feira), ninguém se referiu ao fato de a possibilidade da morte ser intrínseca ao automobilismo esportivo, notadamente na F-1.
Essa circunstância não apenas sempre foi sistematicamente explicitada por locutores e comentaristas, estando decerto bem presente na percepção dos espectadores, como é o que justifica as altíssimas remunerações que os personagens principais auferem. É exatamente por arriscarem a vida que pilotos de F-1 são pagos com cifras indecentes, que podem atingir dezenas de milhões de dólares por ano.
Ora, por definição, a possibilidade da morte é uma possibilidade porque a morte pode vir efetivamente a acontecer. De modo que não cabem as manifestações de espanto pelo fato de a possibilidade se concretizar e um determinado piloto morrer. Muitos morrem todos os anos nas diversas categorias do automobilismo. O convívio não só com a possibilidade da morte, mas com a coisa em si, compõe o dia-a-dia de todos esses pilotos, de todos esses comentaristas e locutores, de todos os espectadores. Pode-se ter certeza de que a expectativa de desastres com rodas e fragmentos voando para todos os lados é parte integrante da motivação de muitos aficionados por tais corridas.
A segunda reflexão concerne à hipocrisia que tem cercado as discussões sobre a segurança na F-1. Na véspera um piloto havia morrido, sem que isso tivesse provocado qualquer questionamento a respeito de regulamentos, pistas, socorro médico, patrocinadores, cartolas e interesses comerciais. O cara morreu, o treino continuou, a corrida no dia seguinte foi realizada. Por que deveria a corrida ter sido interrompida após o acidente com o piloto brasileiro? Por que se comiserar com a "insensibilidade" dos dirigentes? Só porque quem morreu no dia seguinte era brasileiiro, famoso, rico? A vida de um tricampeão vale mais que a de um iniciante?
Nenhum jornal ou emissora brasileira se deu ao trabalho de apresentar nem sequer uma foto do cara que tinha morrido na véspera. Não se procurou saber de sua carreira pregressa ou o que pensavam seus parentes, seus concidadãos, os membros de sua equipe. Mas a morte na véspera foi idêntica e tão trágica como a morte do dia seguinte. A discriminação que se fez entre uma e outra mostra que a preocupação dos veículos de comunicação, dos comentaristas e dos locutores não se referiu ao tráfico desse tipo de morte, mas ao trágico da morte de uma certa figura pública.
Seria até normal que isso ocorresse caso não se pretendesse "aprofundar" o assunto com observações pseudo-técnicas relativas a segurança. Não é razoável que se descubram subitamente reservas quanto à própria existência da F-1 por causa da morte da figura pública, quando não se cogitara nem de longe em exprimi-las um dia antes.
A segurança que de repente se advoga é impossível de ser atingida sem descaracterizar fundamentalmente a própria natureza do automobilismo esportivo. Dele fazem parte o asfalto, que só em sonhos pode ser uniformemente regular em dezenas de pistas diferentes; as curvas, que são assim ou assado conforme desenhos que estão dados; a máquina, sempre falível, ainda mais porque nela a indústria automobilística experimenta inovações; e os pilotos, que não são computadores mas pessoas, que podem tomar decisões erradas com consequências graves para si e para outros. Se a Fórmula 1 não fosse assim, não teria público ou patrocinadores e não ofereceria salários milionários.
Por falar em computador, esses mesmos locutores e comentaristas que crocodilianamente clamam hoje por mais segurança não hesitavam, num passado recentíssimo, em criticar o regulamento da F-1 por permitir o uso de dispositivos de auto-regulação (tração, frenagem, aceleração, suspensão, geometria). O argumento: porque, ao reduzirem a intervenção do piloto, esses dispositivos tiravam a "emoção" do esporte. Queriam emoção? Pois a tiveram na sua expressão máxima, e em dose múltipla.
A terceira e última reflexão nada tem a ver com automobilismo, mas com as reações do público brasileiro. Foi surpreendente observar, em muitíssimos dos depoimentos colhidos nas ruas, a identificação da origem do sentimento de perda: "nossas vidas são uma derrota constante; ele representava nosso único exemplo de vitória". Pois é.

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