São Paulo, sexta-feira, 6 de maio de 1994
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"Lamarca" perde o sentido da história

INÁCIO ARAUJO
DA REDAÇÃO

Filme: Lamarca
Produção: Brasil, 1994
Direção: Sergio Rezende
Elenco: Paulo Betti, Carla Camurati, José de Abreu
Onde: a partir de hoje, cines Olido 2, Espaço Banco Nacional de Cinema/sala 2.

Carlos Lamarca é um personagem inquietante. Quando largou a farda, durante a ditadura militar, tinha uma carreira de oficial ascendente, era o melhor atirador do Exército. Desertou, contra todo conforto e por convicção.
Nos meses seguintes, desafiou o poder com tanta desenvoltura e com ações absolutamente espetaculares, que sua popularidade acabou tornando-o um problema à parte para o governo. Some-se a isso um traço romântico –a união com Iara Iavelberg– e temos em Lamarca um ótimo personagem.
Mas um personagem perfeito pode ser também uma armadilha perfeita. Sugere, com frequência, aos realizadores de filmes que basta alinhavar uma série de fatos para compor um filme.
Em "Lamarca", a sucessão de acontecimentos alimenta-se da crença de que o fato de mostrar é capaz, em si, de atribuir verdade aos acontecimentos.
O problema que coloca o cinema biográfico –pelo menos desde "Cidadão Kane", de 1941– é outro: a dificuldade de saber quem é um homem, a partir de seus atos e pensamentos.
Ninguém precisa ser Orson Welles ou fazer outro "Kane". Mas pode-se evitar o óbvio, tal como diálogos que parecem baterias de clichês e fazem pensar que os guerrilheiros eram bandos de lunáticos.
Perde-se também uma boa chance de desenvolver idéias consequentes sobre a mentalidade militar. Exemplo: Nilton Cerqueira –o oficial que dirigiu a perseguição a Lamarca– quase sofre um ataque de nervos à simples visão de um livro.
Essa visão limitada dos seres envolvidos na trama limita a compreensão que o filme oferece do período (a questão não é defender Lamarca e atacar o Exército, ou vice-versa, mas tentar desvendar as idéias de cada um).
Esse tipo de deficiência mostra-se com mais clareza na perseguição final: institui-se a figura de Lamarca como herói acima do povo, incompreendido e atraiçoado por esse mesmo povo que ele pensa libertar. É frouxo.
Se os problemas de "Lamarca" são de fundo, isso não interfere em méritos pontuais, mas significativos. Desde o cuidado na caracterização de Paulo Betti como Lamarca (em que seu lado militarista é acentuado), até a boa solução dramática encontrada para as sequências de perseguição final, o filme se aguenta perfeitamente, do ponto de vista artesanal.
Falta-lhe, no geral, um olhar capaz de situar Lamarca no centro das contradições brasileiras e, ele mesmo, em sua complexidade.
Talvez a maior evidência disso seja a tentativa de criar uma analogia cênica entre a morte de Lamarca e a de Cristo. Nesse momento, o filme também suprime o diálogo entre o guerrilheiro e Cerqueira, esclarecedor sobre as divergências entre os dois homens (encontrável no relatório do Exército sobre a Operação Pajussara).
A frustração que "Lamarca" deixa no espectador é, enfim, própria do cinema referencial. Ao sair do cinema, o espectador reconhece ali Lamarca, o personagem público. O mistério deste homem tão particular é, porém, omitido. Através desse mistério, do que ele tem até de insondável, se poderia, no entanto, conhecer algo desse momento significativo da história brasileira.

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