São Paulo, sexta-feira, 6 de maio de 1994
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Senna: a glória e a morte

JOSÉ SARNEY

O Velho do Restelo, em "Os Lusíadas", ao assistir a saída dos navegantes, para mares que não se sabiam onde terminavam ou se terminavam, entre as lágrimas dos que ficavam, incertos e quase sempre certos os caminhos de voltar, perguntava, dentro de sua sombra fugidia no porto: para quê tudo isso, qual o sentido da aventura?
Agora, leio Niki Lauda, um herói das pistas de velocidade repetir a indagação do Velho do Restelo: tem sentido tanto perigo, tem sentido essa busca heróica da competição?
Acredito que tenham sido os gregos e os romanos os que primeiro criaram as competições de corridas dos carros que eram usados na guerra, nas pistas de desportos. Não há muito documento de como eram essas máquinas puxadas a cavalo. A verdade é que o homem sempre teve a fascinação pela velocidade, por superar as forças do próprio corpo, depois da força dos animais e, finalmente, o motor a explosão deu-lhe condições de abrir o caminho do infinito.
Ayrton Senna nasceu com essa ambição humana de volúpia da velocidade. Menino, começa a desvendar os mistérios de correr. Desenvolve seus dons, aprimora suas técnicas, domina as limitações do corpo e condiciona a alma a essa mais antiga aspiração do homem: dominar o espaço, o tempo, vencer distâncias e competir com os outros, superá-los e vencê-los. Pode parecer, assim, que o automobilismo é um esporte singular e moderno, dependente da tecnologia e da máquina, das equipes e de um conjunto de pessoas.
Mas não é só isso. No centro dele está o homem. O mesmo homem da maratona, das corridas primitivas, das carruagens romanas. Está a chama eterna do homem. O desejo de ser maior do que ele mesmo. Campbell, ao falar dos mitos, diz que o herói é aquele que morre por um ideal que é maior do que ele. Senna encarnou, num tempo da comunicação instantânea, o desejo de heroísmo de todos os homens, ao vê-lo, sempre, pedindo mais aos motores, querendo chegar ao infinito e chegou.
Jovem, carismático, mito, deus, ele encarnou um símbolo que está na alma do homem, o desejo de vencer, de ser herói. Nós brasileiros, participávamos do seu heroísmo, corríamos com ele e com ele estávamos, comungando e dividindo a vitória, simbolizada naquela bandeirinha do Brasil cruzando a linha da chegada. Era uma emoção que apertava a garganta dos velhos e fazia chorar os mais novos.
Agora, é o silêncio. Choremos. Mas não esqueçamos a alegria que ele deu ao Brasil tantas vezes, em tantos dias, tornando-se cidadão do mundo, onde foi venerado, adorado, amado.
A única maneira de não envelhecer é morrer jovem. O tempo não o desgastará. Na eternidade ele chega moço, com a bandeira dos campeões.
Ele sabia que a glória, essa coisa tão intocável e inconsútil, anda ao lado da morte que muitas vezes é a coroa de louros dos heróis.
Em Imola, naquele muro, sua alma partiu para um encontro com Deus na mais veloz de todas as suas vitórias, quebrando o recorde da vida.

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