São Paulo, sábado, 7 de maio de 1994
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Viva Senna

JOSÉ PAULO CAVALCANTI Fº

A morte é, segundo curiosa definição de Fernando Pessoa, "a curva na estrada". Imagem literária convertida em dramática realidade. Só que essa morte de Senna é maior. São muitas mortes em uma morte, umas por dentro das outras.
É a tragédia pessoal de quem cedo conseguiu tudo –ou quase tudo–, e não colheu os frutos de seu esforço. Deixando intactos o dinheiro, o prestígio e o poder que sempre quis e nunca fruiu inteiramente. Imagino essa situação como se, na fábula da formiga e da cigarra, a formiga trabalhasse duro o verão inteiro e morresse de exaustão, no começo do inverno.
É também uma tragédia mais ampla, da própria natureza humana –de quem sonha com o futuro, o tem quase à mão, e não consegue tocá-lo–, que tantas vezes já ocorreu e ocorrerá tantas vezes mais.
Gonçalves Dias escreveu os bens conhecidos versos "minha terra tem palmeiras/ onde canta o sabiá", que encerra com uma quase prece, "não permita Deus que eu morra/ sem que volte para lá"; e morreu voltando doente da Europa para casa, em um naufrágio, quando podia ver as terras do Maranhão.
Tancredo Neves não usou a faixa de presidente da República. Agora Senna. Que passou quase toda a vida querendo guiar para a Williams e morreu dentro do carro com que sempre sonhou. Quase como um predestinado que não soubesse o destino que estava escrito.
É finalmente a tragédia de um povo frustrado, uma derrota a mais do povo brasileiro. Nas corridas de carro, o que no fundo gostávamos de ver era a bandeira brasileira desfraldada, o hino nacional, o sinal da vitória, a ilusão de que éramos campeões de alguma coisa.
Conversando outro dia com Millôr, ele disse que não sentia as mortes na TV, mas que chorou quando morreu sua cozinheira. A vida é não apenas breve, mas sobretudo perto. A realidade é o que podemos tocar.
Pode até ser, mas nesse caso a morte voou de longe para ser quase tocada nas telas da televisão. Senna morreu como morre alguém muito junto de nós. Cervantes dizia que "por três coisas é lícito que chore o varão prudente: por haver pecado, por alcançar o perdão, e por ter ciúmes." Faltou dizer que o homem chora também de solidão e tristeza. Como agora.
Ayrton Senna passou a vida construindo uma imagem de semideus. Mas no momento definitivo aquele corpo no chão, vulnerável, deu-lhe uma dimensão com a qual ele nunca havia sonhado: a de um ser humano.

JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHO, 45, é advogado e pós-graduado pela Universidade de Harvard (EUA). Foi secretário-geral do Ministério da Justiça (governo Sarney).

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