São Paulo, domingo, 8 de maio de 1994
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Real pode nascer sem lastro e sem âncora

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
ESPECIAL PARA A FOLHA

O debate acadêmico estritamente formal sobre a possibilidade de uma escolha simples entre câmbio fixo com taxa de juros variável ou câmbio flutuante com taxa de juros fixa não encontra mais apoio empírico em qualquer experiência contemporânea.
No entanto, apesar das evidências de que não há regras fixas nem equilíbrios automáticos possíveis nos mercados de câmbio mundiais, continua-se, nas palavras de Dionísio Carneiro ("O Estado de S. Paulo", 05/05/94), "vendendo para os agentes econômicos contos da carochinha como os do Plano Cavallo" ou o de opção simples entre "âncora cambial" e "âncora nominal".
O apelo à idéia de um sistema lastreado, a exemplo do há muito falecido padrão ouro, também continua perturbando as mentes de nossos acadêmicos, sejam eles ortodoxos ou heterodoxos.
Suas leituras sobre hiperinflação européia do período entre guerras os leva a tentações de transposição ou de reinvenção absolutamente fantasiosas, dada à radical diferença da situação financeira internacional contemporânea.
A tentativa de lastrear a nova moeda em dólar, numa cesta de moedas, em ações das estatais, em hipotecas de ativos reais, ou sob que forma seja, não fará nascer por si só uma moeda "real", em qualquer sentido da palavra.
Será obrigatoriamente uma moeda fiduciária, como são todas as moedas conhecidas contemporâneas.
Assim, em vez de perdermos tempo com fantasias estéreis, seria melhor que nos dedicássemos a discutir as questões relevantes da terceira fase do suposto plano de estabilização, que deverá ser executado sob o comando do ministro Ricupero.
Eleitoral ou não, tudo o que se sabe da nova etapa é que já entrará com pouca credibilidade porque a "âncora cambial" não será tão âncora assim.
Dado o atraso cambial, a taxa de câmbio não poderá ser fixa, sob pena de ameaçar o próximo governo de uma imediata midi ou maxidesvalorização.
O ex-ministro Mário Henrique Simonsen já anunciou, há mais de um mês, que o real deveria vir o mais rapidamente possível e a paridade cambial teria de admitir bandas de flutuação em torno de 15%, na melhor das hipóteses.
Como isto não é propriamente uma "banda" que confira credibilidade à nova moeda, a taxa de juros real poderá ser ainda mais alta que a atual para evitar a especulação e a fuga de capitais que as autoridades monetárias e todos tememos.
A discussão sobre a "bolha de consumo" que a remonetização provocaria, a exemplo do fracasso do Cruzado, não vem ao caso, dado que nem as condições salariais, nem os preços em dólar, nem as taxas de juro (internas e internacionais) guardam qualquer semelhança com a situação anterior.
Por outro lado, a idéia de fixar metas quantitativas para a expansão da base monetária tem sido progressivamente abandonada, mesmo pela maioria dos bancos centrais de países ricos.
Não por estarem comprometidos com a manutenção de uma taxa de câmbio fixa, mas porque simplesmente não conseguem nunca atingir essas metas, dada a interdependência entre política monetária, fiscal e cambial, da qual o ex-presidente do FED (Banco Central norte-americano), mr. Volkof, foi ao mesmo tempo um dos principais causadores e vítimas desde os fins da década de 70.
No caso brasileiro, a desregulação do mercado cambial e financeiro promovida pelo governo Collor antes mesmo de obter a abertura comercial e, principalmente, antes de obter a estabilização relativa da nossa pobre moeda, levou a situação das finanças públicas a um verdadeiro desastre.
Uma política monetária pseudo "dura", em menos de dois anos, em vez de acabar com a inflação, obrigou as finanças públicas, já de si precárias, a aguentar o custo financeiro de absorver reservas internacionais fictícias, emitindo dívida pública a taxas de juros flutuantes e progressivamente mais altas.
Como já estou cansada de repetir-me, vou usar a palavra de um autorizado acadêmico conservador, o professor Celso Pastore, que tem a vantagem de não ser aliado nem adversário político da atual equipe econômica.
O que vem recomendando ele nas suas poucas intervenções públicas e acadêmicas? Resgatar a política monetária da sua atual impotência e da perversidade de uma entrada e possível saída de capitais externos especulativos.
Ele reconhece que a moeda atrelada ao câmbio não permite uma política monetária ativa e afirma que no caso do nosso peculiar sistema monetário a elevação da taxa de juros produz mais e não menos inflação.
Depois de desenvolver um raciocínio técnico, que não caberia neste artigo, o professor Pastore recomenda que se volte a praticar controle da entrada (e oxalá da saída) de capitais e que se adote não uma taxa de câmbio, mas duas.
Uma taxa de câmbio comercial que possa acompanhar a situação de preços e competitividade de nossas exportações e evite uma sobrevalorização periódica sempre ameaçada pela chamada "lei Mailson".
Esta indica que os exportadores pedem, exigem e conseguem uma maxidesvalorização da ordem de 30% cada vez que o câmbio se atrasa demais, o que manda para o espaço qualquer plano de estabilização.
Outra taxa de câmbio, a financeira, esta sim interagindo forçosamente com a taxa de juros, através da política monetária ativa, porém sem torná-la rígida para baixo e, portanto, sem uma projeção perversa sobre a inflação e o déficit fiscal.
Em resumo, propõe o professor Pastore uma mudança no regime monetário e cambial, que não vai na direção da falsa opção entre âncora cambial e âncora monetária, que está na moda no nosso debate falsificado.
Evidentemente, tanto ele quanto Mário Simonsen parecem ter mais fé do que eu numa política de crédito restritiva e no controle da demanda agregada.
Esse é o lado que revela suas origens ortodoxas, mas pelo menos imprimem um maior realismo à discussão contemporânea.
Tanto eles quanto eu e dezenas de economistas de todos os matizes, neles incluído o deputado Delfim Netto, consideram a atual política de juros, bem como a proposta de uma "âncora cambial" pela metade extremamente problemáticas.
Não creio que este "acordo" entre economistas de tão diferentes procedências se deva apenas ao desejo de fazer oposição ao atual governo ou ao seu candidato.
Ao contrário, nesta situação econômica de extrema gravidade, todos gostariam de ajudar o país.
Para isso, porém, é necessário que o nosso Banco Central busque não a "independência" do Tesouro, que é impossível, mas que deixe de "quebrá-lo" com a sua política agressiva de juros.
Por outro lado, o governo deveria coordenar-se com os demais órgãos econômicos, para não ocorrerem duas coisas, ambas graves.
A primeira é atrelar-se visivelmente a uma candidatura numa hora de tamanha instabilidade.
A segunda é tentar amarrar com reformas administrativas ou decisões arbitrárias os destinos do próximo presidente da República, por medo de que ele não seja o de sua preferência.
Quando faço as minhas críticas, não estou fazendo "oposição" ao governo do nosso país ou ao Banco Central, estou apenas tentando colaborar, mostrando que não existem regras simples nem planos mirabolantes capazes de estabilizar a moeda de golpe.
Esta só se estabilizará quando um novo governo, com opções claras de desenvolvimento econômico e social, abrir caminho de fato para a ancoragem de capitais num novo padrão de crescimento.
Até lá, e particularmente agora, o Banco Central não terá controle nem sobre a demanda, nem sobre a oferta da moeda.
Assim, as medidas que terá de tomar serão fatalmente discriminatórias de setores amplos das próprias classes dominantes, sob pena de quebrar de vez o Estado.
Neste sentido, o BC precisaria neste momento de todo o apoio político, que só encontrará se for capaz de ouvir representantes de todas as correntes políticas.
Deveria levar em conta, sobretudo, que a fase quatro, depois de eleito o presidente da República, ainda está sob sua responsabilidade e que existem assessores notórios e de reconhecida competência em todos os partidos.

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