São Paulo, domingo, 8 de maio de 1994
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Noticiário dramático expõe limite do telejornalismo atual

SÉRGIO DÁVILA
DA REVISTA DA FOLHA

Na peça "Peer Gynt", de Ibsen, diz-se: "Não se pode morrer na metade do 5º ato". Pegou o telejornalismo brasileiro desprevenido – e o deixou em estado de choque. Resultado: o fluxo da informação, que o telespectador esperava desesperado, tardou.
O papel de informar ininterruptamente sobre o assunto – o único que interessava ao Brasil no domingo – ficou com as rádios AM -CBN, Jovem Pan e Nova Eldorado. É evidente: falta ao Brasil uma CNN.
Desde a noite de domingo, já estruturada, a Globo pôde mostrar a velha superioridade – e saiu-se honrosamente bem na cobertura longa, penosa, ao vivo. Na segunda, o noticiário mais completo veio da rede. Dos telejornais da manhã ao clímax – o primeiro "Jornal Nacional" pós-acidente.
Constrange comparar a qualidade de informação oferecida pela Globo com a do SBT. O "Aqui Agora", que não tinha sequer a imagem do acidente de Senna, tentou segurar-se no luto com que vestiu os apresentadores – detalhes de mórbido mau-gosto.
Mesmo superior em informação, a Globo foi afetada pelo mesmo problema que ocorreu a cobertura dos outros canais: a lentidão em desdobrar a notícia. 24 horas depois, 48 horas depois, Senna continuava morto – e pouco de novo se sabia. O sentido da notícia perverteu-se até virar emoção, comoção, apelação.
Todos os canais caíram na armadilha fácil, expressa sobretudo em clipes que uniam imagens do ídolo a temas musicais melancólicos. Na quarta-feira, a Manchete sobrepôs uma imagem do perfil de Senna a uma tomada aérea de São Paulo, no entardecer. Só há uma palavra para qualificar o devaneio: exploração.
O noticiário dramático levou muitos telejornalistas, de resto, ao disparate. Terça-feira, ao ser informada que Senna não sofrera para morrer, Lilian Witte Fibe disse a Juca Kfouri: "Quer dizer que ele não sabe que morreu?". No mesmo dia, na Manchete, Salomão Schvartzman sugeriu: "Tome um Lexotan e boa noite". Ali, na véspera, Márcia Peltier perguntava a Nuno Cobra: "É possível que ele estivesse em transe na hora da batida?"
Duas vozes lúcidas destoaram: Nélson Piquet, que no "Roda Viva" de segunda-feira (Cultura) informou mais que emissoras inteiras; e Jô Soares, que disse em seu programa que "Senna não teve o direito de morrer apenas uma vez". Referia-se à quantidade de vezes que a imagem do acidente foi exibida.
Era quase uma paráfrase do poema de Fernando Pessoa: "A morte é a curva da estrada/ Morrer é só não ser visto". Para a massa sedenta por notícias, Senna não tinha esse direito.

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