São Paulo, segunda-feira, 9 de maio de 1994
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Reação à morte de Senna obrigou TV a improvisar como nunca antes

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Nem sabíamos que te amávamos tanto, Senna." A frase do torcedor anônimo, pintada em uma faixa pendurada na cidade e citada pelo "TJ Brasil" em sua edição de quinta-feira, sintetiza o sentimento generalizado.
D. Neide, mãe de Senna, em uma das suas raras declarações à imprensa reforçou a surpresa agradecendo o carinho que ela nunca imaginou pudesse ser tão grande.
Para o "Globo Repórter" a reação foi "lenta e surpreendente". "Nem o campeão poderia imaginar que havia tanto amor em uma torcida." "Você pertence a outra dimensão", concluiu o apresentador do programa sexta passada.
Senna já era herói, mas durante os quatro dias que duraram seu velório e funeral, esse herói adquiriu proporções surpreendentes.
Ao abrir um espaço inusitado para a exibição das manifestações populares, a TV contribuiu para fazer crescer a onda de emoção.
A Globo se mostrou craquíssima em captar e expressar aquele clima que arrepia e emociona.
Música suave, câmera lenta, cenas antigas editadas em pedaços especialmente emocionantes como o sorriso da vitória, o champagne escorrendo pela cara, o aceno ao cruzar a linha de chegada, a luz meio esfumaçada, o helicóptero parado no ar e, é claro, a cena do acidente repetida infinitamente.
Imagens solenes, texto repleto de frases de efeito. Essas sequências ajudam a criar uma sensação compartilhada de perda, mas se esgotam ali no assistir à televisão.
Já a exibição das manifestações de solidariedade dos fãs anônimos reconhece e legitima a torcida.
Ao transmitir direto os cortejos e o velório, ao focalizar as muitas faixas, frases, bandeiras e cartazes, ao entrevistar as pessoas na rua, a televisão, como o rádio, criou a sensação de que a presença de cada fã faria diferença e seria notada.
Frases populares ditas em enquetes ou registradas em cartazes se confundem com as frases da notícia. Ambas exploram a força dos antônimos. Como distinguir entre "No céu uma homenagem para quem voa no chão" do locutor e "Para o Deus da velocidade, esse país é muito lento" do torcedor?
Todos dominam a linguagem de expressão de pesar da mídia. E é ela que mobilizam no momento de prestar sua solidariedade, comparecendo à Assembléia Legislativa ou ao enterro e produzindo as milhares de manifestações que ficarão registradas em um memorial.
Ao dar voz a estas manifestações, a televisão se transforma em um elo de comunicação que estimula um efeito bola de neve, levando mais e mais pessoas à rua para manifestar o seu pesar. Em um processo que fugiu da intenção de jornalistas, governantes, políticos e artistas.
O tal fenômeno Senna foi de espantar. Começou assim meio hesitante e foi em um crescendo. Ocupou um "Fantástico" e três jornais nacionais quase inteiros.
São Paulo teve dois dias seguidos de ponto facultativo. 100 mil pessoas foram ao velório na Assembléia Legislativa e mais não sei quantas mil seguiram o enterro.
A família foi de uma discrição nunca vista. Deram ao todo duas rápidas declarações para a imprensa –uma reclamação da falta de segurança nas corridas (pelo irmão) e um agradecimento emocionado pelo "carinho recebido" (pela mãe). Ao todo, dois minutos.
Pediram também meia hora sozinhos no velório e organizaram um enterro sem imprensa nem populares. Surpreendente. Suportaram o espetáculo –realmente nunca visto– e souberam guardar um pouco de espaço privado.
O jornal foi tomado por enormes anúncios pagos de empresas que prestavam sua homenagem.
"Certamente hoje há mais gente na rua do que ontem", afirmavam seguidamente os repórteres. A coisa virou uma bola de neve em que a quantidade de gente na rua e de manifestações passou a dar a medida da consternação.
É como se demonstrar solidariedade tivesse se tornado um desafio que se auto-alimentou loucamente. O presidente, que nem vinha, acabou decretando luto oficial e pegando seu avião para comparecer ao velório.
As figuras dos políticos ali causavam estranhamento. Ninguém reclamou, mas eles estavam lá porque o assunto consternou a nação de tal forma que eles foram obrigados a dar o ar de sua graça.
O caixão foi carregado por um grupo de pilotos que incluía muitos ases internacionais. A bandeira brasileira cobriu o caixão até o fim. Houve salvas de tiros e honras de chefe de Estado.
Enfim, já se sabe de tudo isto. O interessante é o improviso da situação. Ninguém imaginou que Senna pudesse despertar reação de pesar tão unânime e profunda.
Como se o dr. Roberto Marinho tivesse o poder maquiavélico de de repente criar um ídolo nacional.
E de repente Senna representa o homem que encara o trabalho. Lutou, trabalhou com afinco, se dedicou e se arriscou porque queria ser o número "um".
Alguém que "fez da luta contra os limites seu dia-a-dia", disse o "Globo Repórter". Um herói bem diferente de Macunaíma.

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