São Paulo, segunda-feira, 9 de maio de 1994
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África do Sul serve de espelho para o Brasil

CLÓVIS ROSSI
DA REPORTAGEM LOCAL

Para o mundo todo, as eleições sul-africanas foram um desses raros eventos que de fato merecem o rótulo de históricos, por representarem o enterro do apartheid, o regime de segregação racial.
Mas, para o Brasil, além desse aspecto, há também as semelhanças tanto entre as características dos dois países como entre o movimento vitorioso (o CNA - Congresso Nacional Africano) e o partido até agora favorito para vencer o pleito brasileiro, o PT.
Na África do Sul, como no Brasil, há um enorme concentração de renda, uma formidável massa de excluídos e, por extensão, uma demanda social enorme, que vai pressionar o novo governo.
A única grande diferença, que torna mais difícil a tarefa do CNA na comparação com qualquer futuro governo brasileiro, é o tribalismo, inexistente no Brasil.
Em contrapartida, a diferença entre o tamanho das respectivas populações (a brasileira é 3,7 vezes maior) torna menos custoso o atendimento das urgências sociais na África do Sul.
Uma comparação basta: o número de miseráveis no Brasil, popularizado pela campanha contra a fome do sociólogo Herbert de Souza, é de 32 milhões.
São 2 milhões mais do que toda a população negra sul-africana, a fatia em que se concentram as carências.
É preciso levar em conta que, dos 30 milhões de negros sul-africanos, a maior parte (18 milhões) vive com uma renda mensal da ordem de US$ 220.
É pouco para os padrões ocidentais, mas é 3,3 vezes mais do que o salário mínimo brasileiro (cerca de US$ 65).
Esses números induzem a crer que a tarefa de Mandela será menos ciclópica do que terá pela frente qualquer presidente que se eleja no Brasil em outubro.
Mais fácil de dar certo, então? Não necessariamente.
Mandela vai ficar preso a um terrível dilema. Pode tentar um política de gradual recuperação dos formidáveis desníveis entre brancos e negros, para evitar assustar a população branca, que detém a riqueza.
É o caminho anunciado reiteradamente pelo próprio Mandela, que chega a ser acusado pela extrema esquerda de preocupar-se mais em consolar os brancos do que em resgatar os negros.
A questão é saber se a maioria negra aceitará o gradualismo ou vai imaginar que o direito de votar, agora obtido, é sinônimo de direito imediato a emprego, a uma boa casa, a educação grátis e de qualidade, saneamento básico, eletricidade etc.
Tudo enfim o que o CNA promete, mas para prazos que vão de cinco a dez anos.
Se a pressão social for muito forte, a tentação do novo governo será a de agir à Robin Hood, tirando dos que têm (os brancos) para dar aos que não têm.
Nessa hipótese, o risco que Mandela corre é o de afugentar os capitais (seis grupos econômicos controlam 90% das ações negociadas na Bolsa de Johannesburgo, coração da economia sul-africana).
Não há saída fácil, como em todo país com um abismo social tão grande. Por isso mesmo, a África do Sul serve um pouco de espelho para o Brasil.

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