São Paulo, quarta-feira, 11 de maio de 1994
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`O Piano' reconcilia cinema e inspiração

CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR-ADJUNTO DA "ILUSTRADA"

"O Piano" não é um filme para ser apenas visto. Ele deve ser também revisto. Apesar de ainda estar em cartaz, o filme da neozelandesa Jane Campion pode ser a partir de agora desfrutado no conforto da sala de estar.
O filme relata um processo sucessivo de sacrifícios e de perdas. Ada, uma escocesa muda, mãe de uma menina (que é quem narra o filme e dá a ele uma tonalidade imaginária lúdica, mas também cruel), é oferecida a um senhor de terras na Nova Zelândia, em 1850. Nessa época em que o mundo civilizado ainda se resumia à Europa, qualquer além-mar era algo mais próximo do fim-do-mundo com seus selvagens habitantes e paisagens inóspitas.
A primeira grande perda para Ada, depois da voz, é a desse espaço doméstico, aconchegante e sem turbulências.
Ao desembarcar junto com a filha no cenário selvagem ao qual terá que se acostumar, Ada é obrigada a abandonar na praia um objeto que lhe é essencial, que lhe serve de meio sonoro para compensar a expressão da qual está privada –seu piano.
A trama de adultério que se segue tem como ponto de partida a luta de Ada para reconquistar algo que lhe foi suprimido. Ao se envolver com Baines –o selvagem que Harvey Keitel interpreta com energia contida– Ada recupera seu objeto perdido para logo perdê-lo em parte.
Ao dedicar seu amor a Baines, o faz gravando uma mensagem numa tecla que extrai do piano. Para repreendê-la o marido amputa um de seus dedos. Resistindo a esse processo reiterado de amputações físicas ou emocionais, Ada reconquista sua integridade.
Mesmo que uma leitura feminista não seja destituída de propósito, o filme de Jane Campion escapa aos lemas.
O maior de seus encantos se situa do ponto de vista estético, onde Campion dá prova de um fôlego renovador no domínio dos recursos narrativos.
Mesmo sendo um filme de época, "O Piano" não recorre ao artifício da reconstituição para impressionar.
O trabalho de descrição da natureza inóspita que Campion obtém evoca, por vezes, a turbulência física que, por exemplo, John Ford pintou com cores vivas em "Depois do Vendaval".
A diferença é que, aqui, a narrativa é mais seca, contida, e só explode em conjunto com os afetos, mas sempre à distância, inclusive espacial, ou apenas desviando o olhar, como se houvesse um necessário pudor da câmera em tudo tornar visível.
O referencial mais influente para o classicismo predominante em "O Piano" é, contudo, literário. O desejo que tudo incendeia, conduzindo a tragédia ao ápice é, declaradamente, uma derivação de "O Morro dos Ventos Uivantes", romance oitocentista da escritora inglesa Charlotte Bront‰.
Retomando o elemento romanesco, "O Piano" restaura integralmente o contato com uma fonte de inspiração que está na origem do próprio cinema. Esta é sua grandeza.

Lançamento: O Piano
Produção: França/Nova Zelândia, 1993, 122 min
Direção: Jane Campion
Elenco: Holly Hunter, Harvey Keitel, Sam Neill, Anna Paquin
Distribuição: Paris Vídeo Filmes (av. Santo Amaro, 1.747, tel. 011/241-0785)

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