São Paulo, quarta-feira, 11 de maio de 1994
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Subservivência, o último ato da desmoralização

RICARDO FIUZA

Subserviência, o último ato da desmoralização
O povo encontra-se suscetível para aplaudir punições como mecanismo psicológico compensatório
"E a avidez com que a luta política incita os inquisidores a acusar os adversários que lhes podem ameaçar a situação eleitoral? E certa meninada irresponsável da imprensa que quer mesmo é ver o circo pegar fogo e vai passando adiante, sem exame, qualquer insinuação de culpa contra os que talvez estejam de mãos realmente limpas?"
Raquel de Queiroz

As platéias brasileiras se emocionam com "Em Nome do Pai", filme em que o ator Daniel Day-Lewis interpreta um irlandês condenado pela Justiça inglesa. Bode expiatório da justa indignação de uma sociedade diante do terrorismo do IRA, ele e mais dois jovens deixam a juventude na cadeia porque uma montagem de coincidências circunstanciais temperadas com a sede de vingança fez crer que eles fossem culpados. De roldão, o pai é arrastado no processo. Morre na cadeia, expiando uma culpa coletiva, sem ter tido tempo, em vida, para resgatar sua honra e sua dignidade.
Preso por suspeita de assassinato, José Carlos Alves dos Santos tentou escapar da pena transformando-se em herói nacional. A tentativa de dar veracidade aos depoimentos de José Carlos era tamanha que o senador Eduardo Suplicy viajou a Nova York, à custa do Erário, certo de que encontraria viva a esposa assassinada do depoente. A farsa foi tragicamente desmontada quando se encontrou o corpo e se conheceram as circunstâncias da morte.
Permanece na cadeia o quase-herói, e eu, vítima da leviandade desse monstro, sou oferecido à execração pública pelo ódio dos meus adversários políticos.
Uma lógica perversa torna senso comum que quem é de esquerda age por ideal. Quem não é, age por interesses –de certo, escusos e inconfessáveis. Não sou nem nunca fui de esquerda. Como liberal, tive atuação marcante em defesa da liberdade de mercado, da flexibilização dos monopólios, da abertura da economia, contra a reserva de informática e outras tantas reservas que asseguram privilégios e empobrecem o país.
Sou o Fiuza do Centrão, grupo que viabilizou a Constituinte de 88. Sou o Fiuza da enxovalhada "tropa de choque de Collor", pois como ministro do segundo estágio do governo Collor fui fiel ao presidente a quem me subordinava. Atiram-me pedras por essa lealdade, e eu imagino o que aconteceria a um ministro traidor na eventualidade de um governo petista. É minha atuação parlamentar que está sendo julgada, como se numa democracia não pudéssemos ser coerentes com o que acreditamos.
Em 3 de novembro, sob intenso bombardeio de meus opositores, apresentei minha defesa à CPI do Orçamento. O árduo trabalho das subcomissões reafirmou minha inocência. Tive devassadas todas as minhas contas bancárias, de minha esposa e dos meus filhos e nenhuma irregularidade foi encontrada. Na análise de meu patrimônio não detectaram qualquer evolução anormal e muito menos incompatível com minhas declarações de renda. Não viram meu nome em nenhuma relação de empreiteiras, nenhum recebimento de cheque-fantasma ou de "laranja", e nenhuma só voz, neste país, se levantou para indicar ato ilícito por mim praticado.
No dia 28 de maio, começou meu julgamento na Comissão de Constituição e Justiça. Dois meses antes, o deputado Hélio Bicudo declarava à imprensa: "Quem vai decidir se o acusado é ou não culpado são os membros da Comissão. O Fiuza apresentou uma defesa muito bem elaborada". A imparcialidade da Comissão foi reafirmada pelo deputado Sigmaringa Seixas: "Se um deles for absolvido não será por pressão política" ("Correio Braziliense", 17/04). Em defesa da Comissão também se pronunciou o deputado Luiz Máximo: "Como a CCJ é um órgão eminentemente técnico, com representação de todos os partidos, dificilmente uma decisão sua seria contestada" ("Correio Braziliense", 17/04).
Tendo seu relatório derrotado pelo plenário da Comissão, o deputado Hélio Bicudo denunciou um suposto acordo para me inocentar. Surpreendida pelo resultado da sessão, a minoria raivosa do Congresso partiu para uma campanha fascista de pressão sobre os parlamentares. Telegramas da CUT e do PC do B choveram nos gabinetes. Todos exigindo a minha condenação. E, para meu estarrecimento, o baixo clero do jornalismo também assumiu uma posição militante, pressionando diretamente parlamentares para que não os "decepcionassem". Além dos radicais, agiram os inocentes úteis, que o jornalista Carlos Chagas classificou como "patetas que não se cansam de gritar, espumando, que tudo vai dar em pizza, que é preciso cassar todo mundo. Todos, é claro, menos eles".
O povo brasileiro, abalado por longa e penosa crise econômica, com seus sonhos e ideais frustrados por mirabolantes planos de governo fracassados, encontra-se suscetível para aplaudir punições, justas ou injustas, como mecanismo psicológico compensatório para tantas vicissitudes e injustiças.
Hitler alterou o Código Penal do Terceiro Reich para tipificar como crime tudo aquilo que a "sã consciência do povo" entendesse como tal. Descreve Nélson Hungria que "a segurança dos prévios moldes penais foi substituída pelos erros de apreciação, a diversidade dos julgamentos, os ódios pessoais ou partidários, os caprichos da prepotência, o íncubo das paixões do momento" ("Comentários", vol. 1).
Inspirado no mesmo princípio, o deputado Thomaz Nonô, presidente da CCJ, atacou os integrantes da Comissão: "Político que não estiver sintonizado com a rua tem de deixar de ser político" ("JB", 6/05). Intérprete desse clamor, confundindo opinião pública com opinião publicada pelo baixo clero do jornalismo, Nonô investiu sua fúria contra o julgamento técnico feito por seus pares, acusando-os de terem agido como juristas. Na Alemanha, 6 milhões de judeus foram assassinados quando a vontade política do ditador substituiu a lei, interpretando a "sã consciência do povo".
A minoria raivosa quer colocar o Congresso a seus pés. Curvado ao autoritarismo fascista dessa minoria, o Congresso se mostrou incapaz de fazer a revisão constitucional, tão reclamada pela opinião pública. Desmoralizou-se. Se na hora de expulsar injustamente da Casa um parlamentar, impondo-lhe uma desonra que atingirá seus filhos e netos, mais uma vez os deputados se mostrarem subservientes à minoria fascista, o Congresso estará vivendo o último ato de sua desmoralização.
Submeto-me ao julgamento do plenário da Câmara, esperando que se faça justiça. Não renunciei, não renuncio porque quero ser um símbolo de combate ao fascismo, à invasão da privacidade, à quebra das regras jurídicas mais elementares. Em nome da democracia, resisto.

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