São Paulo, quinta-feira, 12 de maio de 1994
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A segunda chance de Quércia

JOSÉ AUGUSTO GUILHON ALBUQUERQUE

Como Paulo Maluf, a seu tempo, Jânio Quadros em outros tempos, e Leonel Brizola ainda ontem, Quércia já foi um candidato considerado imbatível. Como todos eles, teve seus períodos de ostracismo e de "revival". Mas há algo mais que eles têm em comum: talvez essa vontade inabalável de vencer, como todo mito, o inadiável momento da verdade.
Para seus mais fiéis seguidores, esse momento do confronto do mito com os fatos da vida ainda está por chegar. Mas talvez já tenha se manifestado em 1989 quando, governador do mais poderoso Estado do país, com o partido literalmente na mão e sem rivais para unir a maioria do eleitorado, do centro à direita, Quércia encontrou outro obstinado, um obstáculo inabalável na candidatura de Ulysses Guimarães. Era a sua vez, e Quércia a deixou passar.
Mesmo renascendo das cinzas de uma candidatura considerada sepultada ainda ontem, não se deve subestimar as condições favoráveis a Quércia. Ele terá a seu favor o maior partido nacional, capaz de lançar candidatos competitivos para o governo da grande maioria dos Estados, e uma aura de vencedor.
Traz também uma longa experiência de campanhas aguerridas e algo que falta aos outros candidatos, com a exceção de Brizola: a fidelidade pessoal de uma pequena máquina bem azeitada e disciplinada, voltada exclusivamente para a sua vitória. Em toda assessoria de candidatos existem rivalidades e interesses, grandes e mesquinhos mas, no caso de Quércia, tudo indica que, no pequeno número que realmente conta, eles estão sob controle. Talvez porque fiquem de fora, num círculo mais distante, os intelectuais, ideólogos e políticos, cujas ambições costumam ser incontroláveis, porque as têm em maior conta do que a vitória ou os interesses do candidato.
Conta com invejável credibilidade como líder moderado, comprometido com o empresariado, nacional e estrangeiro, mas plenamente cônscio das vantagens de ter sob seu controle um punhado de empresas e bancos estatais. Dúvidas sobre seu enriquecimento não parecem ser suficientes para comprometer a simpatia que desperta entre os militares por seu estilo autoritário de chefia.
Seu velho companheirismo de estrada com o PC ainda lhe granjeia o apreço da esquerda ortodoxa, e desta vez será poupado pelo PT, cujo alvo preferencial é sempre o rival mais próximo, e não o adversário. Em suma, um amplo círculo de adesões, apoios, simpatias e neutralidades, de fazer inveja a qualquer um. Fruto de uma grande dose de profissionalismo que faz falta a seus principais contendores.
Mas também apresenta insuficiências importantes e elas são de diversas ordens. A mais óbvia é de natureza eleitoral. Diferentemente das eleições de 1989, nestas o espaço eleitoral natural de Quércia não é um vácuo de candidaturas sem credibilidade e competitividade.
Aureliano Chaves, Guilherme Afif, Paulo Maluf e o próprio Ulysses nem de longe podiam comparar-se com o potencial que Fernando Henrique detém hoje para unificar o eleitorado na faixa que Quércia precisaria ocupar para chegar ao segundo turno.
Outra dificuldade de ordem eleitoral apresentada é a de reunir, se não a unanimidade, pelo menos a grande maioria do partido. Tudo indica que a experiência de substituir o dr. Ulysses na direção nacional do PMDB não lhe caiu muito bem. Fora da província, que dominava com perfeição, Quércia trombou mais do que devia e não correspondeu à merecida expectativa de estabelecer um domínio inconteste sobre o partido no plano nacional.
Ainda do ponto de vista eleitoral, Quércia não soube navegar fora do mar territorial do PMDB. Não conseguiu compor-se com a direita no plano nacional, condição "sine qua" para credenciar-se como alternativa a Lula.
O PFL foi para as águas de Fernando Henrique, o PTB e o PP singram a mesma rota e o PPR está, por enquanto, à deriva. Ironicamente, Quércia parece fadado a disputar o apoio de Brizola, cujo eleitorado é essencialmente de esquerda e, no segundo turno, desaguaria naturalmente em Lula.
Sua pouca atenção às alianças estratégicas no processo sucessório levam a crer que Quércia continua a entender a política como nos tempos em que tudo se resumia a vencer a convenção do (P)MDB. Tempos em que, como dizia o dr. Ulysses, muito a propósito, elegia-se até um poste. Hoje, não basta vencer a convenção...
Essa insuficiência estratégica soma-se a uma unidimensionalidade tática que se baseia no que chamei de consórcio: trata-se de obter apoio político prévio em troca da distribuição de benefícios futuros. Para ter sucesso, o consórcio exige uma posição inicial de força, ampla disponibilidade de recursos a consorciar e a certeza de vencer.
Todos são elementos que determinam uma campanha de "vento a favor": quem está dentro, apóia; quem está fora, adere; quem tem a perder, se compõe; quem está contra, passa-se por cima.
Faltam-lhe no momento, entretanto, os elementos essenciais para consorciar sua candidatura pelo PMDB. Terá de disputá-la e conviver com o desgaste resultante. Para ter o "vento a favor" seria necessário tornar-se, sem contestação e com antecedência significativa, o único candidato viável para enfrentar Lula no segundo turno. Isto não é de todo impossível, porém não dependerá apenas de Quércia mas, principalmente, dos erros de seus adversários.
A última ordem de restrições a comentar diz respeito à governabilidade. Seu conformismo em disputar um PMDB dividido e sua despreocupação com a formação prévia de uma coalizão parlamentar sugerem que Quércia imagina uma governabilidade sem segredo. Ou melhor, cujo segredo é o consórcio.
Já mostrei, em vários trabalhos, os limites do consórcio como estratégia de governo, especialmente nas administrações de Sarney e Collor. O consórcio funciona em circuito fechado, é eficaz em convenções partidárias e colégios indiretos, mas não se pode consorciar o Brasil inteiro.
É um jogo de somas cumulativas "ad infinitum", onde o fluxo de apoios políticos que entram e de prebendas que saem precisa ser constante. Tentar consorciar o Congresso, como tentaram Sarney e Collor, é esquecer que, na política nacional, os jogos de soma zero são inevitáveis e, neles, o que é benefício para uns é sempre custo para todos os demais. Mais um governo de consórcio, com o que isso implica de liberdades para com a probidade administrativa, talvez esteja além do que nossa democracia pode suportar.

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