São Paulo, domingo, 15 de maio de 1994
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Burgess narra a destruição no século 20

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Publicado em 1989, "Qualquer Ferro Velho" (Any Old Iron), que a Rocco põe amanhã nas livrarias, tem tudo aquilo que se podia esperar de um romance de Anthony Burgess (1917-1993): personagens obsessivos (alguns ficcionais, outros reais, como os escritores A.J. Cronin e Joseph Conrad), temas palpitantes e erudição a granel (sobretudo linguística e musical). Ao fundo, um diorama do cataclísmico século 20. Como em "Poderes Terrenos" e "As Última Notícias do Mundo". Sem, no entanto, os mesmos delírios de imaginação.
Nem, infelizmente, a mesma empatia. Muitas vezes, "Any Old Iron" é leitura das mais enfadonhas. Em "Poderes Terrenos", Burgess revolvia de forma envolvente os subterrâneos do Vaticano e as intimidades de um escritor decalcado em Somerset Maugham.
Em "As Últimas Notícias do Mundo", fundia o crepúsculo de Freud com a montagem de um musical da Brodway sobre Trotski e a destruição da Terra, às vésperas do ano 2000. Só aparentemente o projeto de "Qualquer Ferro Velho" é menos ambicioso. Nele, duas famílias – uma galesa, outra judia – , unidas por um casamento atípico, um amor não-correspondido e uma estranha, mas inabalável amizade, dão uma lição de sobrevivência no mais desajustado dos mundos. Desajustado, acima de tudo, pela malversação de ideais.
Uma das idéias-motrizes do livro é a de que as grandes causas religiosas e políticas do nosso tempo quase sempre foram meros pretextos para esmigalhar coisas e pessoas. "Era o esmigalhamento que interessava", conclui o desalentado narrador da história, um terrorista aposentado que, ao menos uma vez, se dirige ao leitor à maneira de Laurence Sterne.
Seu principal herói, é um galês, Reginald Morrow Jones, obcecado pela idéia de sanear o mundo e escravizado ao mito da justiça incorruptível. Um quixotesco templário que não consegue evitar as barbaridades das duas guerras em que se alista, limitando-se a testemuná-las. Seu maior feito acaba sendo o rapto (ou o resgate) da espada Excalibur (em galês, "Caledvwlch"), em poder dos soviéticos. Não a queria para si, mas para os seus patrícios, os verdadeiros herdeiros do mitológico "ferro velho" a que o título se refere.
Rezam as lendas celtas que, depois de passar pelas mãos de Átila, o Huno, de um general romano e de um rei bretão, Excalibur caiu sob a guarda do rei Arthur, transformando-se em seguida numa espécie de Santo Graal dos galeses.
Sua presença no livro é mais simbólica (e episódica) que concreta. Fala-se dela, de suas origens e de sua odisséia nas primeiras páginas, mas a aparição só se dá no terço final, quando então deixa de ser mito para tornar-se "uma substância tangível, uma solidez que afirma a realidade do passado como uma força que trabalha no presente, e, sem dúvida o futuro". No presente, sua força transmigra para as cimitarras dos palestinos, vítimas do "esmigalhamento" promovido pela nobre causa da criação de Israel, um dos temas enfocados por Burgess. Outros: o naufrágio do Titanic, a Revolução Soviética, a Guerra Civil Espanhola e o último conflito mundial, panos de fundo da saga dos Jones, que se inicia quando o menino David – pai de Reginald e futuro sobrevivente do naufrágio do Titanic – é pego se masturbando com uma Bíblia ilustrada na outra mão. Ao alcance de seus olhos, uma gravura do festim de Baltazar.
Mitos bíblicos e pagãos, referências a Auden, Sartre, Groucho & Karl Marx, Mozart, Mendelssohn, Kant, Hegel, Irwin Shaw, Norman Mailer, Lubitsch, Eisenstein, John Barbirolli e a lendários encraves boêmios de Manchester, certa época frequentados por John Gielgud e Arthur Schnabell – em mais de um ponto Burgess tenta emular o riverrão joyceano, procurando sempre, como de hábito, o vau da prosa linear e descomplicada. Não por coincidência, dedicou o livro a Richard Ellmann, biógrafo e hermeneuta de Joyce.
A tradução da Rocco merecia uma resenha à parte, tantos e tão frequentemente primários são os seus erros. Não bastasse a insistência em traduzir "bastard" por bastardo (em vez de canalha, cretino etc) e qualquer "fucking" por fodido, a tradutora confunde Gales com Gália e, por conseguinte, gales com gaulês. Tampouco sabe que Belshazzar é Baltazar, Biscay é Biscaia, Burma era Birmânia ("gato burnês", portanto, não existe), "Holy Saturday" sempre foi, entre nos, Sábado de Aleluia (e não "Sábado de Semana Santa") e as expessões "the real McCoy" (autêntico, genuíno) e "for the road" (saideira) nada significam se traduzidas literalmente.
Vertidas para um português de dublagem, algumas frases soam incompreensíveis. Outras, apenas rombudas: "Papai não confia nos galeses, ele mesmo o sendo".

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