São Paulo, domingo, 15 de maio de 1994
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O mal pelos olhos de James

BERNARDO CARVALHO

Da Reportagem LocalA ambiguidade está no centro de toda a obra de Henry James (1843-1916). Em "Pelos Olhos de Maisie" (1897), é ela que permite ao autor transformar o romance psicológico clássico no mais delirante experimentalismo, levando-o aos extremos do gênero.
A começar pelo título original ("What Maisie Knew" – o que Misie soube ou sabia), este romance da segunda fase do escritor -que inclui ainda "The Tragic Muse" e "The Spoils of Poynton" – se serve da ambiguidade como principal elemento e efeito catalisador de um sofisticado projeto literário. Um labirinto onde o narrador se confunde com a própria trama e as fronteiras entre o objetivo e o subjetivo são rompidas para sempre.
Em "Pelos Olhos de Maisie", esse projeto chega às raias do delírio, embora, ao contrário de textos como "A Volta do Parafuso", não haja qualquer indício de demência ou alucinação, seja do narrador seja entre os personagens.
O romance é escrito em terceira pessoa, por um narrador indefinido (James era admirador de Flaubert), o que torna ainda mais curiosa e perfeita essa estrutura onde os olhos da protagonista (Maisie), e não do narrador, passam a representar, na própria ficção, o projeto literário desse autor americano, que adotou a Inglaterra como pátria em 1876 e naturalizou-se inglês em 1915.
Maisie é mais que um personagem; é quase um manifesto, a encarnação ficcional da renovação e experimentação literárias propostas por James a partir da exacerbação dos princípios do romance psicológico, que contribuiu a fundar.
Com grande influência na literatura do século 20, o romance psicológico clássico subjuga a trama a minuciosa descrição do caráter dos personagens, fazendo a intriga surgir de fatos aparetemente insignificantes.
Em "Pelos Olhos de Maisie", a protagonista é uma menina que, após a separação dos pais, é jogada de um lado para o outro, usada pelo pai, pela mãe, pelo padrasto e pela madrasta, conforme as prioridades, conveniências, interesses e jogos amorosos destes.
No prefácio do autor à "Edição de Nova York", incluído na tradução brasileira, James diz que o personagem da menina serviu para "fazer com que a consciência limitada desta protagonista constituísse a totalidade do meu campo, garantindo cuidadosamente, ao mesmo tempo, a integridade dos objetos representados".
Ou seja, James usa a aparente "inconsciência" e incompreensão" de uma menina pequena como Maisie para criar uma narrativa em que o sentido das coisas é revelado para o leitor -e não necessariamente para a protagonista – por sua simples aparência, sem que seja necessário penetrar a mente dos personagens.
Contando com a "inocência" de Maisie, os adultos vão se revelando sem maiores pudores, permitindo ao narrador se ater à descrição de suas ações diante da menina para que o leitor compreenda tudo, a perversão que os move.
A ambiguidade está presente já nesse ponto de vista aparentemente inocente. Ao começar o romance – e por um bom tempo – o leitor tem a certeza de que a pobre Maisie é uma vítima das circunstâncias, da separação dos pais e do ódio que nutrem um pelo outro.
O próprio James comenta em seu prefácio que a dignidade e a boa-fé da protagonista saem magnificados diante da monstruosidade dos adultos que a cercam.
Aos poucos, no entanto, a narração aparentemente neutra em terceira pessoa, vai permitindo ao leitor perceber que o mal pode já estar presente na dissimulação inocente da menina, que não é apenas vítima passiva dos acontecimentos, mas agente dissimulada.
De tanto ser joguete das mesquinharias, calculismos e perversões dos adultos, Maisie parece aprender as regras do jogo e a usá-las em seu próprio proveito, para a realização última e dirfaçada de suas vontades. Sob a aparência de sua inocência (aprende a se passar por imbecil), Maisie acaba podendo ouvir tudo e dizer as coisas nuas e cruas.
Parece haver um aprendizado da dissimulação, em que a protagonista vai criando suas próprias defesas ao ser submetida aos jogos dos adultos, ao ver como agem à sua volta.
Seria uma das leituras possíveis. Mas há outra, mais trágica, embor o humor e a ironia sejam o tom predominante do livro, sobre a origem desse mal na infância, que parece intrigar Henry James.
A partir do momento em que se percebe (a própria protagonista percebe e declara) que tudo gira em forma onipotente em torno de Maisie, que ela é o centro e a causa de todos os acontecimentos (embora, no princípio parecesse ser apenas um pretexto), torna-se ambígua a origem do mal: se foi adquirido na convivência, estava do lado de fora, com os adultos, ou se sempre esteve em Maisie.
Uma dúvida semelhante percorre também um dos textos mais populares de James, "A Volta do Parafuso", adaptado para o cinema como "Os Inocentes". Ali, não se sabe ao certo se a perversão das crianças foi adquirida em reação à presença de espíritos maus, se sempre esteve nelas (teriam matado os antigos criados) ou se é resultado do ponto de vista atormentado da narradora, a nova criada.
Em "Pelos Olhos de Maisie", essa dúvida é mais sutil; nunca é explicitada. Permanece como o substrato do texto, muito mais próximo de uma comédia que de um livro de horror.
É o que James define como "ironia integral", a criança como "centro e pretexto de um novo sistema de transgressão", que só pode ocorrer pela existência dela – "o conflito que, ao que tudo indicava, ela viera ao mundo para produzir".
É como se, de repente, todo o texto fosse submetido a uma nova luz: em vez de vítima, Maisie é o motor da trama; o relato passa a ser resultado da fantasia onipotente da criança – o mundo só existe em referência a si mesma – dissimulada pela narração "exterior", da terceira pessoa.
James é o primeiro a comentar, sem humildade, a fascinação provocada pelo sucesso desse curioso projeto narrativo, que anuncia a mais desvairada modernidade num mundo hoje considerado clássico.

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