São Paulo, segunda-feira, 16 de maio de 1994
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1964: Por quem dobram os sinos?

LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO

Um equívoco se introduziu no balanço geralmente estabelecido a respeito do golpe de 1964. Quando aparece gente –tão rara quanto os micos-leões– lembrando as atrocidades cometidas pela ditadura, surge um mal-estar que toca até democratas tarimbados. Quase sempre, os rememoracionistas são informados que a transição não incorporou este tipo de cobrança, que os responsáveis pelo regime militar são hoje autênticos liberais. Como sói acontecer entre nós, estes eventos dramáticos teriam perdido seu nexo histórico. Não aviltam, nem preocupam mais a nação. Se transformaram apenas em culto doméstico das famílias das vítimas. Quem quiser tratar do assunto que o faça literariamente. Que escreva um desses romances de formação, meio autobiográficos. E estamos conversados. Ainda assim, com recursos de escrevinhador e assumindo o risco de ser inconveniente, é possível insistir. Para além do revanchismo, deve haver espaço para uma análise das consequências atuais da tirania que se abateu sobre o país 30 anos atrás.
Paradoxalmente, o golpe de 1964 trouxe no bojo um elemento revolucionário: rompeu as cadeias de solidariedade de classe, de estatuto, de educação, de profissão tecidas entre as camadas privilegiadas. Durante um século e meio estas cadeias de solidariedade pairavam acima dos conflitos que atravessavam a nação. Decerto, foram sangrentos os choques interoligárquicos pelo controle dos Estados. Na ditadura varguista surgiu um patamar mais avançado no processo repressivo. Porém, predominavam as operações de polícia, sem envolvimento direto do Exército. Operações que não chegavam a se generalizar. Alguns interventores protegeram parte da esquerda. Impediram que os setores dissidentes da oligarquia fossem alcançados pela polícia do Estado Novo.
1964 quebra o ascenso da esquerda, mas também esfrangalha a conciliação das elites. Não foi um processo simples. Foi preciso primeiro –novidade– que a ditadura internacionalizasse os conflitos brasileiros. Para isso contou com as mudanças da conjuntura mundial. Havana empurrava a América Latina para a Guerra Fria. Washington alterava suas alianças no Terceiro Mundo. Aqui e alhures a direita tradicional era ultrapassada por eventos que escapavam às relações de forças internas. Perpetrado o golpe, o guerrilheirismo ganha espaço à esquerda, trazendo água para o moinho dos autoritários. De fora e de dentro, intervinham fatores ou extremavam as análises. Existia, é claro, a aposta militarista cubana, fornecendo aberrante apoio à luta armada. Mas o radicalismo de esquerda se alimentava ainda dos interditos internos –censura de imprensa, prisões, cassações, fraudes– impostos à constituição de uma frente eleitoral contrária ao regime militar.
Não estava inscrito no mapa astral brasileiro que os acontecimentos devessem tomar este rumo sinistro. A resposta inicial dos Estados Unidos às teses castristas sobre a América Latina fora uma proposta de reformas sociais, a "Aliança para o Progresso". Algo similar ("A Operação Pan-Americana") tinha sido formulado por Juscelino. Havia campo para uma aliança reformista de contenção ao castrismo. Por razões difíceis de resumir, entre as quais pesou o extremismo dos neoconservadores brasileiros, emplacou a aliança autoritária.
A primeira vítima importante da radicalização foi, justamente, Juscelino. De começo, JK se acumpliciou à ruptura constitucional. Acreditou nos dirigentes que lhe garantiam ser o golpe uma ação preventiva para firmar as presidenciais de 1965. Falhou a tal perspicácia mineira e o Brasil amargou o resto. Como não ver, retrospectivamente, que Jango constituía apenas o alvo inicial –mas secundário–, dos golpistas? Como esquecer a artilharia montada para atingir JK, o alvo principal? Na altura, a direita autoritária já tinha rifado a direita moderada. Indo em frente, extinguiu os partidos políticos, derrubou JK, candidato imbatível nas eleições previstas para 1965. Saltando para fora dos parâmetros conservadores, o "putsch" virou ditadura.
Texto meditado, o AI-5 se apresenta, por si só, como um desmentido às interpretações visando a descarregar a responsabilidade pelos "excessos" do regime nas costas de subalternos. Veio do vértice do Estado –de uma reunião solene do Conselho de Segurança Nacional composto pelos principais ministros e pela hierarquia militar– a cobertura política e legal para afrontar as liberdades públicas, os direitos individuais. Da mesma forma, não se deve atribuir a concepção do AI-5 a alguns coronéis nordestinos e a outros tantos coronéis do Exército. Veio do centro-sul economicamente avançado o estímulo e a sustentação à deriva autoritária. Dois membros do "establishment" paulista, dois civis, catedráticos da USP, tiveram um papel crucial na implementação do texto mais celerado da história brasileira: o ex-reitor Gama e Silva, ministro de Justiça, que açulou a crise e urdiu o conteúdo do Ato Institucional, e Delfim Netto, ministro da Fazenda. Foi o sr. Delfim Netto que trouxe a um Costa e Silva ainda hesitante a garantia de que o AI-5 não encontraria oposição entre o empresariado, "podendo ser o Ato editado tranquilamente" (testemunho do general Portella, citado por Zuenir Ventura). Com sua habitual lucidez, o então ministro da Fazenda fez juízo certo. Comprometidos pelas benesses estatais e a pusilanimidade cívica –fatores característicos de nosso capitalismo postiço– as organizações patronais aprovaram a guinada autoritária. O AI-5 derruba o padrão político evolutivo plantado desde a independência pelos herdeiros do despotismo ilustrado pombalino. Este padrão pressupunha um espraiamento progressivo das liberdades reservadas à burocracia do Império e às oligarquias. Instituições embrionariamente democráticas iriam ampliando seu escopo, à medida que a população fosse "civilizada" pelas elites. Doravante, a regra não tinha mais validade. A "evolução civilizadora" foi rompida por elites que enveredavam pela barbárie.
Medrou então um mostrengo nunca visto nas paragens. Uma direita capaz de atropelar as oligarquias, centralizar o poder, comprometer as Forças Armadas. Um regime apto, enfim, a nacionalizar a repressão. Status, galões, apadrinhamentos, tudo ia para espaço quando a "subversão" entrava em linha de conta. Tal é o cerne do problema histórico que se criou. Sem medo de ser feliz, uma parte substancial das elites decidiu bancar a ditadura. Como fica tudo isso hoje, às vésperas de uma difícil eleição presidencial?
Embora a prática constitucional tenha ascendido a um nível inédito, não se pode dizer que os neoconservadores estejam definitivamente comprometidos com o jogo democrático. Impossível dissimular: o assalto de Fernando Collor e seus bandoleiros aos cofres públicos –ousada operação de pirataria montada para destruir nosso país– viabilizou-se por causa do apoio que os partidos conservadores, o patronato, a Rede Globo proporcionaram ao grotesco "caçador de marajás". Do lado oposto, a candidatura de Lula, portadora de um programa de reformas, deflagra de novo a paranóia neoconservadora. Parte da direção petista aumenta a tensão ao propugnar a vitória no primeiro turno. Desconsiderar as alianças políticas em favor da aritmética eleitoral constitui, de fato, um erro grosseiro. Matematicamente concebível, eleitoralmente possível, a vitória de Lula no primeiro turno seria politicamente desastrosa. Dispensado de debater a fundo seu programa, seu ministério, desprovido de alianças de centro no Congresso e nos Estados, o governo do PT –alçado pela primeira vez à administração extramunicipal– estaria entregue à sua própria sorte. Todas as condições se alinhariam para tornar o governo federal refém do presidencialismo mais primitivo, mais vulnerável ao golpe.
Desde logo, parece legítimo formular algumas questões. Existe, nos círculos do poder, a percepção de que a guerrilha dos anos 1970 acabou de vez, não pelo terror da Oban e dos DOI-Codi, mas por causa da revolução eleitoral desencadeada em 1974 pela acachapante vitória do MDB de Ulysses Guimarães? Está bem aceite que foi esta mesma vitória levou a ditadura à breca? Sem a carga negativa irradiada do pólo externo sovieto-cubano o pólo interno da direita autoritária definhará? A sociedade civil impediria hoje um ministro da Fazenda de garantir a um eventual ditador que um texto como o AI-5 poderia ser "tranquilamente editado"? Pode ser que sim. Na circunstância, a memória dos "desaparecidos" ficaria de fato circunscrita ao luto mal resolvido dos sobreviventes.
Outra hipótese merece entretanto ser considerada. Talvez o mostrengo ainda se remexa. Talvez, a direita nacional –sempre ruim de voto– estiolasse suas redes eleitorais no vaivém entre o autoritarismo e os candidatos aventureiros, tipo Jânio e Collor. Talvez, ao declarar que haverá golpe se Lula vencer, o sr. Antonio Carlos Magalhães não esteja blefando. Nesse caso, a memória dos desaparecidos extravasa o culto familiar, avilta a nação, ganha lancinante atualidade. Nesse caso, os sinos não dobram apenas pelos corpos sem nome amortalhados nas águas da Guanabara, nas ribanceiras do Araguaia, nos sítios de tortura. Dobram também por nós, pobres coitados, cidadãos de um país onde a democracia é contingente, os direitos civis transitórios. Onde o passado não passa.

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