São Paulo, terça-feira, 17 de maio de 1994
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O bezerro da órfã e o câmbio fixo

LUÍS NASSIF

Em São Sebastião da Grama existiam uma viúva e a filha, cada qual dona de um bezerro. A viúva ficou muito doente e prometeu, se sarasse, oferecer um bezerro à igreja local. Sarou e cumpriu o prometido: doou o bezerro da filha.
A tese do câmbio fixo do real remeteu às historinhas de infância. A viúva são os autores do Plano Real e a filha da viúva, o próximo presidente.
A lógica é quase a mesma dos diplomatas que bolaram o cronograma do Mercosul. Define-se uma camisa-de-força legal –ou um prazo rígido de implantação, ou o tal câmbio fixo– e supõe-se que a falta de alternativas produza a pressão necessária para as reformas. Se não produzir, dançamos todos –o que, convenhamos, é um detalhe irrelevante perto da grandeza das formulações acadêmicas.
A fixação do câmbio, com o real, produzirá um encarecimento inicial na economia, em relação aos preços externos, que será do mesmo tamanho da inflação residual. Depois virá uma inflação adicional, que dependerá muito dos níveis de consumo pós-real (sobre os quais ainda não se chegou a um consenso).
Este atraso no câmbio tem um componente recessivo, já que desestimula exportações e incentiva importações. Para contrabalançar este efeito, há a necessidade de ganhos em outras áreas, como redução de impostos e de juros –que dependem exclusivamente da reforma do Estado e demais reformas constitucionais.
Estas reformas não têm efeito imediato sobre as contas públicas e sobre as expectativas gerais da economia. Estão amarradas a calendários fiscais e a quesitos operacionais relevantes.
O próximo presidente assumirá o país com o câmbio acumulando certo atraso e nenhuma das reformas encaminhadas. Se não tiver coesão interna e clareza de idéias sobre as reformas vai levar no mínimo de dois a três anos para dar início ao processo de reformas. Se tiver clareza (quase impossível para início de governo) não leva menos de um ano.
Além de administrar todos os problemas comuns a um início de governo, ainda vai ter no seu pescoço o torniquete do câmbio apertando dia-a-dia. É mais fácil produzir uma desestabilização política do que reformas econômicas.
Programas e prazos
Justamente por isto, desde o momento em que Fernando Henrique Cardoso assumiu o Ministério da Fazenda, pedia-se a ele e a seus economistas que tivessem a grandeza de encaminhar as reformas econômicas e deixassem o golpe final da inflação para o próximo presidente.
Planos de estabilização são de longa duração.
Está aí a Argentina perseguindo há vários anos a sua estabilidade. Encaminhando as reformas, a escolha do programa de estabilização adequado seria um mero detalhe, à escolha do próximo presidente, e com tempo suficiente para ser implementado.
Preferiu-se este plano cosmético, sem as reformas. Agora se apregoa o câmbio fixo para obrigar o próximo presidente a efetuar as reformas. Porque a viúva não pagou a promessa com o seu bezerro?
Se é tão simples assim, porque não colocou seu próprio pescoço no torniquete, para se obrigar a pensar grande e a deflagrar o processo de reformas?
Ricupero e as reformas
Na sexta-feira passada, em entrevista ao "Jornal Bandeirantes", o ministro Rubens Ricupero explicava que a estratégia do plano consistia em lançar a reforma monetária e, com o apoio político obtido, ingressar na segunda etapa do plano –a das reformas. Brilhante! E quando vai ter início a segunda etapa para que todos os brasileiros de boa vontade possam se unir e apoiar o governo em sua cruzada redentora? "No próximo ano", foi a resposta.
Não adianta. Câmbio fixo sem reformas encaminhadas produz mais facilmente o caos do que saídas.

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