São Paulo, terça-feira, 17 de maio de 1994
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Henri Lévy mostra guerra da Bósnia e protagoniza cena de pastelão

LÚCIA NAGIB
ENVIADA ESPECIAL A CANNES

A apresentação de "Bosnal", o "filme de combate" do filósofo francês Bernard-Henri Lévy, na mostra "Um Certo Olhar", culminou com um pastelão.
Quando Lévy subiu ao palco para apresentar o filme, um espectador atirou-lhe no rosto uma torta de creme.
Os seguranças, que demoraram a deter o agressor, se atrasaram para impedir que um outro desconhecido também atacasse Lévy.
O espetáculo foi menos engraçado do que assustador, considerando-se o filme em questão.
"Bosnal" ressuscita o defunto cinema militante, tomando partido decidido da Bósnia-Herzegovina, que desde 1992 vem sendo bombardeada por sérvios e croatas.
Lévy é hoje o intelectual mais engajado em combater a "boa consciência" dos europeus e do Ocidente em geral.
Segundo acredita, os ocidentais mantiveram-se indiferentes ao massacre da população de Saravejo e outras cidades bósnias, ao "extermínio racista" dos muçulmanos e à existência comprovada de campos de concentração sérvios.
Era portanto de esperar reações indignadas por parte dos acusados. A exasperação já era nítida em alguns jornalistas sérvios que compareceram à coletiva de imprensa do filme bósnio "O Homem, Deus e o Monstro".
Contra Lévy, passaram ao ataque físico. É que, neste seu segundo filme sobre a questão bósnia, ele não quis só documentar, mas explicar o absurdo da guerra.
"Os que dizem que não compreendem", afirma ele, "correspondem àqueles que, em 45, diziam não saber de nada".
Lévy quer recuperar a reflexão histórica, num momento em que "o Ocidente acredita que a história terminou".
Ele pergunta se a Bósnia não é o buraco negro em que a Europa se afundará, após a queda do muro de Berlim e o fim do regime soviético.
"O Homem, Deus e o Monstro" é uma produção coletiva de Sarajevo, onde agora se tenta retomar a produção cinematográfica.
Os diretores, Arnautalic, Idrizovick, Kenovic e Zalica combinaram materiais rodados para três filmes diferentes, o que resultou num documentário fragmentário e irregular, mas de acordo com a condição de um país em ruínas.
Três séries de imagens se entrelaçam. Uma espécie de "home movie" de pessoas comuns mostra como os atos mais banais do cotidiano se tornaram difíceis pela carência de tudo.
Janelas quebradas são reparadas com plástico. A água é apanhada em fontes distantes e gravetos secos são caçados pela rua para improvisar um fogão.
Outra série de imagens mostra a experiência em Sarajevo de Susan Sontag, outra intelectual interessada em despertar a consciência dos países ricos para a questão bósnia.
Sontag encena com artistas locais "Esperando Godot", de Beckett, enquanto comenta o "fenômeno Godot" em Sarajevo, ou seja, a eterna espera pela ajuda estrangeira.
O terceiro grupo de imagens refere-se ao "monstro". Trata-se de um soldado sérvio prisioneiro de 21 anos, que narra com um detalhismo frio como degolou e estuprou dezenas de bósnios.
A força e o horror dessas imagens certamente compensa a precariedade de um cinema que mal começa a renascer.

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