São Paulo, terça-feira, 17 de maio de 1994
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Enterro de Senna foi Carnaval profundo

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Eu não escrevi sobre a morte de Senna. Quando vi o desastre na TV, dezenas de vezes repetido, como se a câmera quisesse decifrar o mistério da vida e da morte, como se houvesse a esperança de, em uma das vezes, o carro magicamente sair flutuando no espaço, intacto, com Senna redivivo, fiquei muito triste.
Mas, quando a nação inteira começou a se mover, como uma onda inesperada, preparando os funerais, fiquei irritado. Comecei a falar da "midia", de "manipulação das emoções populares", ou então, sobre o nosso pobre "homem simples carente de heróis". A morte de Senna seria a tediosa "confirmação" de minhas (nossas) teses sobre "alienação", sobre desamparo do país, sobre "atraso psicológico" etc.
Então, com uma ponta de orgulho superior, eu lamentei a estupidez nacional, a emocionalidade simplória de nosso povo e, do alto de meu pódio espiritual, falei: "Não vou escrever... porque vou acabar criticando a dor besta deste povo chorando um mero `peão de multinacional'; é melhor eu não escrever...", resmunguei como se fosse o árbitro do sentimento nacional.
Minha mulher, Suzana Villas Boas, deu de ombros: "É melhor não escrever mesmo, para não dizer besteira". De noite, ela foi em silêncio ao velório de Senna e chegou em casa com flores brancas e uma vela de sete dias.
Quando vi, tinha uma vela ardendo na sala, com um vaso florido de margaridas. Sorri emocionado com paternal carinho, ("oh, as mulheres tão puras em sua dor..."). Mas, aquela vela ficou queimando em minhas noites. Pensei em escrever, mas só me batiam obviedades e eu, então, do alto de minha "grandeza", optei pelo silêncio.
Vejam como a sobriedade pode ocultar a violência, como a arrogância pode ser discreta. E lia os artigos dos intelectuais sobre o fato e sempre tinha aquela sensação de tautologia (oh, palavra difícil para vocês, ignorantes...), de que a "cocada vem do coco do coqueiro".
Senna foi comparado com Aquiles, com Hércules, com Tancredo, com o cacete a quatro e todos falavam, falavam e ninguém dizia o essencial. E eu não me emocionava. "Estou cada vez mais frio", suspeitei com o mal-estar de um sábio.
Só tive um travo na garganta quando os outros pilotos de terno escuro seguraram nas alças do caixão. Prost ali, humilde e respeitoso, me deu uma dor real. No entanto, Senna continuava a queimar em minha sala, na vela branca de Suzana, como um espírito obsessor, e de noite, com insônia, cheguei a ter um calafrio olhando a chama trêmula, que parecia a alma do campeão.
Foi nesta noite de domingo que me caíram na mão dois artigos sobre a morte de Senna: a entrevista de Roberto da Matta para a "Veja" e o artigo do antropólogo americano Matthew Shirts (que mora aqui) no "Estado de S. Paulo". Dois textos luminosos. E, lendo-os, percebi que eu não escrevi sobre o enterro de Senna porque estava com o cérebro lavado. Vi que não tinha entendido nada.
Aí Matthew e Matta me disseram no texto: "A mídia (e eu...) não conseguiu acompanhar a cena (...) de um Brasil popular que entrava no palco, sem intermediários, para representar a si mesmo. Senna precisou morrer para mostrar que há algo no Brasil acima das classes sociais" (M.S.).
Ou "a crise de auto-estima instituída e fomentada pelos bem-pensantes já encheu o saco!... A teoria econômica tem limites, a antropologia tem limites, o moderno não foi feito para aniquilar o tradicional. Senão, a gente fica na posição do sujeito que nunca consegue entrar na festa!" (R.M.).
Ou seja: assim como a luta de classes vela pela propriedade, a intelectualidade vela pela luta de classes como propriedade intelectual. O burguês protege suas propriedades; o intelectual protege suas idéias.
Há que se respeitar um pensamento menos apriorístico, que, como na arte, abra caminho para o improvável, para o casual, para o emocional. O país continua aprisionado em sócio-análises secas e duras. Como é pouca a produção teórica realmente inventiva neste país, comparada à fortuna de bens espirituais que o sistema acadêmico acumulou. Assim como há uma burguesia financeira; há uma burguesia intelectual. Há feudos interpretativos no país, que traçam o desencanto previsível de um destino demarcado.
Choramos por uma harmonia, por justiça social e por um Primeiro Mundo impossíveis. E não vimos (eu não vira) que a explosão de energia vital que o enterro de Senna nos trouxe é muito mais que um pranto. Não foi um pranto; foi uma celebração cultural, muito além da política.
E não foi esse papo de "derrotados que choravam seu único herói". Não. O povo tem muito mais recursos do que as elites (teóricas ou não) pensam. Como diz o psicanalista Luis Tenório de Lima: "O povo não é incompetente. As elites erram e põem a culpa na população". O Brasil mostrou que não está aprisionado no destino lhe imputam os intelectuais.
Nunca entendi direito a frase de Brecht: "Infeliz do povo que precisa de heróis". Que é bom, então? Um administrativismo sombrio? Pode-se dizer o contrário: "Infeliz do povo que não precisa de heróis". A explosão de energia erótica, carnavalizada, barroca que foi o enterro de Senna foi uma bofetada na crença informatizada pós-utópica de que nada mais vai acontecer que não seja previsto.
Tínhamos que perder as ilusões idiotas que nos levaram à deriva nos últimos séculos? Sim. Tem sido bom o desmascaramento da "democracia" brasileira? Sim. Mas isto não quer dizer que somos uns vira-latas.
Vida não é software
O enterro de Senna foi um Carnaval sério. Nossa marca nacional foi sempre a explosão de um mito sexualizado de alegria e liberdade. Mas, a mídia do "mundo exterior" tende a menosprezar esta festa como coisa meio primitiva, orgiástica, menor. Com o funeral de Senna, não.
Foi o show de um ordeiro protesto barroco, uma emissão crítica ao mundo "civilizado", um show ativo contra a álgida previsibilidade de um mundo que acha que sabe tudo de antemão. Foi a novidade moderna de um choro coletivo arcaico, um grande uivo milenar, um desmentido à frieza do mundo.
Ou seja, a emocionalidade, o Carnaval, a loucura, a incapacidade para se organizar deste povo é sua maior riqueza e ele não vai ser domado pelo trancamento em um projeto calvinista-informático de esquerda ou direita.
A vida não é um "software". O Brasil escapará do controle neoliberal. Somos barrocos. Se a cultura de massas americana escolheu a violência, nós escolhemos o sexo. Como dizem Matthew e Da Matta, um brasileiro nos EUA e um americano na Vila Madalena:
"Só o Brasil tem a ginga para escapar da pós-utopia" (Matthew) ou "acredito que no mundo moderno somos o único país que tem potência para substituir essa visão contratual de regras estabelecidas e imutáveis do convívio social. O Brasil criou uma cultura de massas que rivaliza com a americana que, de resto, só faz ensanguentar as telas de nossas televisões..."
"Acho bacana um país que se preocupa com a Copa, com Senna ou com a música. O que dá certo aqui não tem a ver com a venda de armas ou a vitória nas guerras. Não temos nenhum Roberto Oppenheimer (inventor da bomba atômica), mas é melhor ter um Chico Buarque, um Romário que um Oppenheimer".
Ou seja, há alguma coisa no Brasil que vai nos ajudar nesta pauleira pós-liberal, há um "eros" que talvez nos venha a proteger da informática assassina que vem aí. Quanto a mim, vejo que não tinha escrito porque me considerava um "xogunzinho" (como outros que Da Matta aponta), um dono da verdade que o povo assustou e refutou.
No fundo, estava com inveja de Senna, que tinha enterro de herói, e com raiva do povo, que destruía meus esquematismos. O enterro de Senna tem importância mundial. Como Mandela dançando na posse. Os excluídos estão começando a se mexer.
Contra o extermínio, o Carnaval. Contra a balela pós-liberal de que tudo está decifrado, a invenção e a surpresa! O enterro de Senna não foi pranto; foi celebração. Não foi coisa de "gente simples"; foi sofisticação. Nova e bela era a chama da vela de sete dias que minha mulher Suzana acendeu. Eu não vi o sinal e perdi a festa.

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