São Paulo, quarta-feira, 18 de maio de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

`A Gaivota' prova atualidade de Tchecov

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Três, quatro anos atrás, quando escrevi sobre os clássicos, era para ser por um tempo. Shakespeare, os seiscentistas, os gregos, eles vinham para mostrar que a palavra tinha lugar no teatro, num momento em que o teatro brasileiro parecia não mais acreditar na palavra, como de resto, o teatro do mundo.
Também o teatro do mundo passava por seu renascimento, no qual os clássicos ocupavam o centro do palco. Mas o passo seguinte, como está sendo com autores novos como Tony Kushner ou velhos como Arthur Miller, seria a valorização da dramaturgia contemporânea. Não é o caso, por enquanto, do Brasil.
Por aqui, quanto mais clássicos se montam, mais eles se provam quase perfeitos autores contemporâneos –como no título do livro de Jan Kott sobre o "nosso contemporâneo" Shakespeare, o qual, aliás, não sai mais de cartaz, tendo sido montado mais de um terço de sua obra, desde o início da década.
"A Gaivota", um clássico moderno, é a evidência mais recente. Na montagem de Francisco Medeiros, a peça espelha, como poucas vezes se viu no teatro brasileiro recente, a ambição por uma arte maior, na dramaturgia. A peça parece ter sido dirigida e até mesmo escrita para falar aos autores nacionais.
Autores que seguem intimidados em dar as grandes proporções humanas aos seus personagens, aos seus heróis, por mínimos ou realistas que sejam. Pois é o que fazem Tchecov e Shakespeare e Tony Kushner –ou Howard Korder, para citar outro jovem americano, também com visões, ideais, sonhos maiores no teatro.
Jogo de referências
Tchecov tinha sonhos maiores quando escreveu "A Gaivota". A peça faz um óbvio jogo de referências com "Hamlet", que é até citada, mais de uma vez. Treplev é Hamlet, Arcádina é Gertrudes, Nina é Ofélia, Trigórin é Cláudio. Reeescrevendo a história de Elsinore, Tchecov espelhava a sua Rússia.
Mais, espelhava a si mesmo e à arte russa num momento maior, como havia sido também aquele dos elizabetanos. "A Gaivota" fala, entre muito mais, da própria arte. Da futilidade do confronto entre velho e novo, da mentira das formas, da busca da espontaneidade ou da pureza e do desespero em vê-la perdida.
Como em "Hamlet", não há lugar para simplismo, para maniqueísmo. Não é possível descrever as emoções que ela proporciona, quando bem encenada. E Francisco Medeiros, com a clássica e complexa "A Gaivota", conseguiu muito mais do que uma encenação correta –que é sempre o temor em casos assim.
O diretor tornou Tchecov um "nosso contemporâneo". Quando Treplev monta a sua peça-dentro-da-peça, é do teatro de "imagens" ou de "impressões", o mesmo de hoje, de que se fala. Quando Arcádina é citada como "rotina", como "convenção", o tema é a rotina e a convenção do teatro brasileiro.
O novo e o velho
Quando ambos são denunciados, o novo e o velho, é para o teatro de hoje que se está clamando. Francisco Medeiros realça, não apenas esses, mas outros pontos semelhantes, com pequenos ajustes de voz, de cenografia. Sem exageros, com a sintonia fina na interpretação do texto, faz com que a peça viva.
Para isso, o grande colaborador é J.C. Serroni. O subsolo do Centro Cultural São Paulo, tão mal adaptado para "Áulis", desta vez estava envolvente, acolhedor até, com o concreto recortado da obra completando-se em harmonia com aquele do piso da própria cena. Há unidade, afinal, para um teatro.
E a crueza do concreto, nos blocos do palco, repete aquela do palco erguido às pressas, triste, esquecido, de Treplev, na peça-dentro-da-peça. Um palco que merecia, porém, ser mais bem iluminado. Do jeito que está, seus ângulos, níveis, fendas –a sua complexidade não recebe o realce que deveria.
Na interpretação, mantida em patamar regular pelo elenco, há um destaque para cima e outro para baixo. Walderez de Barros, no papel de Arcádina, está próxima da exatidão, saltando do sarcasmo das cenas iniciais ao carinho e, nessa mesma cena que faz com o filho, à extrema agressividade, à ira.
Em apenas um momento seria possível lapidar o trabalho da atriz no papel de Arcádina –uma primeira atriz, também ela. É naquele em que seduz Trigórin. Quando se joga aos pés dele, e antes, quando se sente insultada na sua beleza, a personagem pede muito mais, em cólera patética e humilhação.
O destaque para baixo é Mayara Magri, que chega a dar a impressão de só haver sido escalada porque a personagem diz ter consciência de "estar representando verdadeiramente mal". Fora a brincadeira, a atriz não consegue, em momento algum, refletir a pureza, a imagem de uma gaivota morta em seu vôo.
Sem a imagem de Nina e sua paixão juvenil pelos artistas, a ponto de confundir a glória com a fama, um dos temas tocados pela peça, "A Gaivota" perde muito, mas muito mesmo. Nina, por Mayara Magri, não parece um anjo caído, mas uma menina que já começou na futilidade e daí terminou como bem merecia.
Marco Ricca, que faz Treplev, que ama Nina, acaba perdendo assim uma face de seu personagem. E também cai, aqui e ali, em excessos do que parece acreditar ser a correta empostação clássica. Bobagem, mas também ele está reconhecendo terreno. Está aprendendo a falar. E, como Treplev, tem muito a dizer.

Título: A Gaivota
Autor: Anton Tchecov (1860-1904)
Tradução: Tatiana Belinky
Elenco: Cia. do Bixiga
Quando: Quinta a sábado, às 21h30; domingo, às 20h30
Onde: Centro Cultural São Paulo (r. Vergueiro, 1.000, tel. 277-3611)
Quanto: CR$ 6.000,00

Texto Anterior: Festival de cinema recebe inscrições
Próximo Texto: Peça mostra obsessão de Picasso pelo selvagem
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.