São Paulo, quarta-feira, 18 de maio de 1994
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Peça mostra obsessão de Picasso pelo selvagem

MARIO VITOR SANTOS
DA REPORTAGEM LOCAL

A apresentação de "Picasso Andaluz – A Morte do Minotauro", do grupo espanhol La Cuadra de Sevilha, une elementos de dança, canto e representação teatral. O conjunto é coeso, de tom solene e ritual.
A vida do pintor, escultor e ceramista Pablo Picasso (1881-1973), criador (com Georges Braque) do cubismo, é mostrada desde o nascimento em Málaga até a morte no exílio.
No início do espetáculo, anuncia-se a intenção de enfocar o tema a partir das influências cristã, judia e muçulmana que se encontraram na região espanhola da Andaluzia, onde Picasso nasceu.
A ação é aberta com um presépio, em meio à escuridão, de tom lúgubre que impera todo o tempo da representação. A luz, quando existe, é amarelada, reforçando a referência à oposição claro-escuro, meio convencional usado para recriar uma ilusão da realidade na pintura. Velas acesas em castiçais dourados contornam as três estruturas que servem de cenário.
Os atores, em trajes típicos, não falam. Seu texto é gritado na forma de um lamento choroso, prolongado, interminável.
As cenas são desenhadas em ritmo de procissão surrealista, como quando a primeira mulher do pintor surge enorme, apoplética, a condenar a existência frívola do pintor e suas modelos, nuas, sujas, andaluzas.
Bailarinas, acrobatas e o arlequim da "commedia dell'arte" aparecem em rosa, no único momento de maior leveza, no qual o artista se permite um olhar mais terno e otimista sobre a humanidade.
Um minotauro, ícone do arsenal surrealista, derruba a mulher de Picasso, arrasta-a no chão, penetra-a. Segue também uma tourada, a lancinante e insuportável agonia do touro, que jorra sangue pela boca. Um bailarino maneja a cabeça do animal, enquanto sapateia freneticamente ao som dos violões.
Impulsos de amor e morte são realçados alegoricamente até o paroxismo. Cantores flamencos, acompanhados por excelente dupla de violonistas, ligam as cenas. Seu canto, um esgar desesperado, vaticina desfecho trágico para a existência sofrida do pintor. Picasso morreu na França sem ter condições de voltar a ver a Espanha, então sob o poder da ditadura do generalíssimo Francisco Franco.
O espetáculo é por vezes arrastado, agônico. A movimentação de atores lenta, como se o diretor Salvador Távora desejasse decompor o movimento dos personagens até congelá-lo em suspensão impossível. Tudo colabora para a criação de uma atmosfera de profunda paixão melancólica, à maneira de alguém que viveu os horrores da guerra civil.
Também à maneira de alguém que viveu profunda divisão interna, especialmente nas cenas em que o touro exibe a paixão obsessiva de Picasso pelo elemento selvagem, o impulso violento, poderoso, sexual e associado ao inconsciente, paixão aliás cultuada de alguma forma pelas tradições ibéricas em geral.
O ponto alto da apresentação ocorre com a intervenção de um "deus ex-machina", uma estrutura cenográfica acoplada a uma máquina que avança no palco, eleva e faz girar uma atriz sentada numa cadeira. A atriz imóvel, rosto iluminado contra o palco escuro, olha para algo que leva no colo, talvez o pequeno Picasso.
Seu lento giro parece tentar reproduzir a estratégia cubista, a decomposição da representação pictórica em unidades, a partir de uma multiplicidade de ângulos diferentes. O momento é lírico, surrealista e de grande impacto.
A representação não segue um fio literário. O ponto de unidade são músicas folclóricas, em solo ou coro, em que a intensidade da canção liga as diferentes imagens mostradas, num efeito que por vezes lembra aquele conseguido pelo diretor Romero de Andrade Lima e seu grupo, mas que é único em sua estranheza e intensidade.

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