São Paulo, quinta-feira, 19 de maio de 1994
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Fantasmas de carne e osso

BORIS FAUSTO

Um estimulante artigo de Gilberto Dimenstein, publicado nesta Folha (`Quanto custa um idiota', 15/05), suscita muitas reflexões. Tento resumir para quem não leu. Diante da gravidade da crise e das pressões sociais, Dimenstein afirma que "se estão mesmo preocupados com o país, como dizem, os candidatos devem se comprometer a ajudar o futuro presidente a governar, apoiando dentro e fora do Congresso a estabilização econômica".
Se não houver um pacto do bom senso, diz ele, o resultado será o pacto dos idiotas: ganhe quem ganhar, terá um caldeirão fervendo pela frente. A observação é plena de lucidez.
Em qualquer país em que os dirigentes políticos pensem em termos nacionais, sem abandonar os interesses partidários e pessoais, há opções muito amplas que interessam à sociedade como um todo. No caso brasileiro, a estabilização, tendo como resultante a retomada sustentada do desenvolvimento econômico, é uma delas.
Observo apenas que um pacto de bom senso, na linha sugerida, foi proposto a Lula por Fernando Henrique. Infelizmente, a proposta só mereceu ironias.
Mas, as expectativas previsíveis, no terreno da governabilidade, com relação a Lula e Fernando Henrique são mais do que diversas: na verdade, são opostas.
Uma vitória de Fernando Henrique representaria o triunfo de uma figura política que deteve recentemente forte soma de poderes nos postos de comando do Estado e mostrou capacidade de negociar, em condições muito adversas.
Tanto mais que terá fortes possibilidades de contar com a maioria do Congresso e dos governadores eleitos. Seu comprometimento com o programa de estabilização, que demanda um prazo mais longo para se tornar irreversível, não precisa nem sequer ser ressaltado.
Em resumo, terá problemas, pressões sociais, necessidades de atender a compromissos, mas nada disso afetaria um quadro previsível de governabilidade, no caminho imediato da estabilização e mediato da reforma social.
Na hipótese de vitória de Lula, as coisas se apresentariam de modo bem diferente, demonstrando aliás que um pacto de bom senso deveria ser uma preocupação central dos setores lúcidos do PT.
Lamentavelmente, o modo de encarar a questão, por parte dos dirigentes petistas e de amplos segmentos de sua base e da burocracia partidária, causa graves apreensões. Tomemos o exemplo do plano de estabilização econômica em curso.
Como reage o PT com relação a um plano que, desde logo, pela primeira vez na história brasileira, foi lançado à ampla discussão, renunciando-se ao caminho autoritário de um choque? Reage combatendo o plano, criando obstáculos, dentro e sobretudo fora do Congresso.
Dirão alguns, o plano prejudica os trabalhadores e portanto, é justo que a CUT e o PT se mobilizem contra ele.
Não é aqui o momento de discutir estas afirmações, mas sim de partir para uma pergunta. Se o plano não serve, qual a proposta alternativa do PT, em todos esses anos e nos dias de hoje, além de uma estridente e vaga retórica, que virou um lugar comum? Ficamos no direito de pensar que a estabilidade da moeda não é um problema sério para o PT. Tudo se passa como se a estabilidade e a reconstrução do Estado não fossem pré-condições indispensáveis para dar base efetiva às questões vitais da reforma social e da redistribuição da renda.
Sem prosseguir no caminho da estabilização e sem apresentar uma alternativa coerente, o PT está e estará ajudando a manter um quadro inflacionário, que poderá recolocar o país na rota explosiva da hiperinflação, atingindo a grande massa da população.
Passemos a um outro terreno –o das mobilizações sociais e das greves. Não se pode negar o direito de greve nem muito menos deixar de reconhecer as condições de penúria de algumas categorias, inclusive das que outrora integraram a classe média, como é o caso dos professores da rede pública de ensino de primeiro e segundo graus.
Uma eventual vitória de Lula vai, entretanto, levar a pressões dos grupos radicais no sentido de que a dívida social comece a ser resgatada aqui e agora. Como reagiria o governo Lula diante de tais pressões, que são, aliás, colocadas desde já, no interior do PT, como uma ameaça? Teria convicção e firmeza suficientes para segurar as pressões, desgastando-se inevitavelmente diante das tendências radicais de seu partido e de outras figuras que esperam a realização do milênio? Ou seguiria pelo caminho mais fácil, atendendo a reivindicações que seriam convertidas em pó logo adiante, pela escalada inflacionária?
Uma questão análoga é a das privatizações. Se Lula vencer, terá a firmeza e a convicção para prosseguir em um programa coerente de privatizações ou cederá às pressões do pessoal das estatais, onde conta com uma forte base de apoio? Neste último caso, para atender a interesses corporativos, estará jogando sobre a massa da população os custos da manutenção de empresas parasitárias, nas mãos do Estado.
Um mínimo de lucidez política, à margem do pipocar de tiros de metralha para onde parecem se encaminhar as campanhas eleitorais, nos leva a dizer que os riscos à governabilidade, por parte de um governo petista, não são fantasia nem chantagem de ninguém.
Tanto mais quando se sabe que esse governo dificilmente contaria com a maioria do Congresso, onde não será majoritário e nem com o apoio dos governadores dos Estados, eleitos em esmagadora maioria, ao que tudo indica, por outros partidos.
Tão grave quanto ceder à paranóia é adotar o comportamento do avestruz. Há fantasmas imaginários, mas há outros que são de carne e osso. O pacto do bom senso se basearia nesta avaliação. As figuras de comando bem-intencionadas, nos diferentes partidos políticos, nas direções sindicais e na sociedade estariam dispostas ainda a rumar neste sentido?

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