São Paulo, sexta-feira, 20 de maio de 1994
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`Malícia' só existe para iludir o espectador

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Filme: Malícia (Malice)
Produção: EUA, 1993
Direção: Harold Becker
Elenco: Alec Baldwin, Nicole Kidman, Bill Pullman
Onde: a partir de hoje nos cines Olido 1, Gazetinha, Iguatemi, West Plaza 2

"Malícia" é o que se pode chamar cinema de manipulação. Nada contra, em princípio: isso era o que Hitchcock fazia. Usava todas as armas da ilusão cinematográfica para levar o espectador, deslocá-lo, controlar suas reações.
Mas ser Hitchcock não é para qualquer um. De maneira que é quase patético ler as declarações do diretor Harold Becker ("Vítimas de uma Paixão", 1989) numa peça publicitária.
Diz ele: "É um drama fascinante porque mostra o lado escuro do ser humano". Ninguém espera que um diretor de filme diga que seu roteiro não vale nada. Daí a ser essa maravilha anunciada vai uma distância colossal.
O roteiro nos mostra, no início, o feliz psicólogo Andy (Bill Pullman), vivendo feliz com sua doce mulher Tracy (Nicole Kidman).
Existem duas sombras em suas vidas. A primeira, íntima, é o fato de Tracy não conseguir engravidar (ela que gosta tanto de crianças). A outra é a presença de um "serial killer" nas redondezas do campus, dizimando as alunas.
Uma terceira surgirá, na pessoa do médico Jed Hill (Alec Baldwin), operador competentíssimo que vem trabalhar no hospital da pequena cidade de Westerly, Massachussetts, onde mora o casal.
Jed é o personagem forte da história. Na mesma medida em que Baldwin é o ator forte do trio. Desde sua entrada destila ambiguidade: há um tanto de beleza em seu rosto que convive com certa perversidade do olhar.
Ainda aí, o espectador está no direito de se perguntar se isso não é mera aparência, diante de sua capacidade de salvar vidas.
É verdade, as coisas começam a se enrolar quando Andy descobre que Jed foi seu colega de escola em tempos remotos e eles iniciam uma amizade que nunca tiveram. A tensão ligeira que se cria por aí é, porém, apenas circunstancial.
A partir de meia hora de filme os personagens começarão a revelar seu verdadeiro caráter. Daí por diante não se pode contar nada, sob pena de arruinar as surpresas que o filme reserva ao espectador nos setores traição e perversidade.
Pode-se dizer, a bem da verdade, que o próprio filme trata de arruiná-las. Voltando a Hitchcock. O que fazia (e faz) o encanto de seus filmes não era a capacidade de jogar com a vontade do público. Esse era o aspecto circunstancial de um cinema construído sobre um conhecimento profundo dos seres humanos.
Hitchcock desprezava o verossímil para buscar a verdade de seus personagens. Digamos que essa é uma atitude oposta à dos roteiristas Aaron Sorkin e Scott Frank e à do diretor Becker.
Por fim: não se saberá jamais a que vem o "serial killer" na trama. Alhos e bugalhos não têm nada a ver. É verdade, "Malícia" fez sucesso nos EUA e arrisca repetir o êxito no Brasil: sempre haverá quem admire esse cinema de manipulação. Mas que tudo isso é rasteiro, é.

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