São Paulo, domingo, 22 de maio de 1994
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A condenada

MOACYR SCLIAR

Ouvindo a sentença ela pensa: não, não pode ser verdade, isto não pode estar acontecendo comigo,é um sonho mau, um pesadelo do qual daqui a pouco despertarei, primeiro assustado, e depois rindo, rindo muito...
O juiz acabou de condená-la. O juiz acabou de dizer que ela fabricou penosas memórias, que ela fez surgir, em sua jovem paciente, fantasias de incesto. Incesto com esse homem, o pai, esse homem antes considerado um pervertido e que agora,sorrindo diante das câmeras de tevê, declara: "É uma vitória tremenda."
Não, não pode ser verdade. Ela ainda lembra quando a jovem veio procurá-la: estava deprimida, comia sem parar. Ela recebeu a pobre moça com simpatia, com a compreensão que os pacientes raras vezes encontram: "Vamos conversar", tinham suas palavras. "Vamos conversar, vamos explorar os labirintos de sua mente, vamos descobrir de quem você está fugindo, vamos descobrir a razão pela qual você busca refúgio na comida."
No começo, fora muito difícil. Era como se caminhassem na névoa, na espessa névoa da memória. O que é que você vê, ela perguntava, e a moça respondia, desesperada: não vejo nada, não consigo ver nada. Era decepcionante, mas ela não desistia, voltava à carga:
– Você não vê um vulto? Um vulto que se aproxima de você?
E aí a moça começou, sim, a ver um vulto. E aos poucos, graças ao esforço dela, terapeuta, o vulto começou a tomar forma: era um homem...
– Seu pai?
– É! Meu pai! É meu pai!
E o que ele está fazendo, perguntava, e a moça chorava, e não queria responder, e ela insistia: será que ele não está em cima de você?, e por fim a jovem gritava, sim, ele está em cima de mim. O que representara o triunfo, o grande triunfo de sua terapia.
Agora está tudo terminado. Ela sai do tribunal, e é como se caminhasse no meio da névoa. Ela quer enxergar alguém, um homem. Ela quer enxergar o pai, é o seu pai que ela quer ver. Mas é inútil, ela foi condenada, e pai nenhum deitará com uma condenada, nunca, nunca, nunca.

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