São Paulo, domingo, 22 de maio de 1994
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A desordem mundial e a situação do Brasil

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
ESPECIAL PARA A FOLHA

As crises que instabilizaram a economia mundial na década de 70 foram seguidas de dois movimentos de reafirmação da hegemonia americana, no plano da diplomacia do dólar e no plano estratégico-militar, que modificaram profundamente o funcionamento e a hierarquia das relações internacionais a partir da década de 80.
As consequências dos desajustes provocados pela política norte-americana ainda não terminaram e seus efeitos globais são difíceis de avaliar. Vamos alinhar os principais fatos que põem em dúvida a existência de "uma nova ordem mundial".
A transnacionalização e integração do espaço europeu e a própria transnacionalização do espaço econômico nacional norte-americano esgotaram seus efeitos dinâmicos em 1989/90, anos a partir dos quais começou o declínio de investimento direto estrangeiro global.
Em termos espaciais, o grosso das novas relações bem-sucedidas de globalização ocorreu na nova região do Pacífico, incluindo a transnacionalização da Ásia e dos EUA, sob o comando dos conglomerados japoneses.
Na região européia da CEE, a globalização processou-se sob a liderança mais "frouxa" das empresas e bancos alemães e chegou aos seus limites, atravessando hoje a "Europa Global" uma profunda crise econômica, social e moral.
Em termos históricos, este processo de globalização ocorre em simultâneo com duas "terceiras ondas": uma nova revolução tecnológica e um novo estágio de internacionalização do capital, distintos dos dois anteriores, isto é, daqueles que tiveram lugar depois da primeira e da segunda revoluções industriais.
O grau de abrangência dos processos de rivalidade e colusão dos grandes oligopólios internacionais incorpora hoje todas as dimensões da produção capitalista, desde a comercial e financeira até a tecnológica.
Além disso, a lógica da concorrência global incorporou, pela primeira vez na história do capitalismo, os países asiáticos mais atrasados, conduzindo-os a um papel relevante na expansão do capitalismo contemporâneo.
A regressão industrial e a crise financeira dos países periféricos, em particular os sul-americanos e os do Leste Europeu, e a semidestruição da África conduziram uma parte importante da humanidade a debater-se no paroxismo da fome e do desemprego.
O indiscutível avanço no sentido da democracia política que ocorreu paulatinamente na década de 80 em quase todos os países periféricos começou a ser ameaçado de novo a partir de inúmeras guerras civis e golpes de Estado.
A grave deterioração dos padrões de vida das populações pobres e das classes médias baixas já incorporadas, provocada pelas políticas de ajuste neoliberal, aplicadas "urbi et orbe" pelo conjunto de tecnocratas do "Consenso de Washington", está provocando espasmos de protesto e reações desesperadas ou de desânimo com a democracia, mesmo nos poucos países onde as "experiências" foram consideradas bem-sucedidas.
Como contratendência à globalização, está-se verificando um processo de formação de blocos em termos de proteção comercial e divisão de esferas de influência onde não só a "geografia" é importante, mas a assimetria de poder (militar, econômico, financeiro e tecnológico) é decisiva para a estabilidade do que sobrou da "velha ordem".
Dada essa própria assimetria e a instabilidade estrutural na Europa e na Ásia, segundo todos os observadores treinados no jogo do poder (de Kissinger a Helmuth Schmidt), não está à vista nenhuma "ordem mundial", senão uma colossal, embora encoberta, "desordem".
Os caminhos propostos pelo neoliberalismo e a globalização financeira não favorecem, sequer na atualidade, os interesses nacionais das potências dominantes.
A crítica à "globalização" não está ainda suficientemente avançada teoricamente, mas os seus efeitos perversos sobre o desemprego, concentração da renda, da riqueza e do saber já começam a manifestar-se com mais nitidez mesmo nos países desenvolvidos.
Essa desordem pode ser criativa no Brasil, na medida que se eliminem a má-fé, a desinformação ou a cegueira ideológica que pretendem copiar o "modelo global" ou, diga-se de passagem, o de qualquer país de sucesso, passado ou presente.
O Brasil não se parece com a Rússia, os Estados Unidos, a Índia ou a China (para ficar apenas com os países continentais) e terá de achar seu próprio caminho neste mar revolto em que se converteram a economia e a política mundiais.
Apesar de tudo, a desordem internacional que se iniciou em 1979 e vem avançando a passos largos desde 1989 não aparenta ser uma restrição absoluta a um caminho novo e autônomo da sociedade brasileira, embora não lhe seja propriamente favorável.
Os obstáculos reais à estabilidade duradoura e à retomada do desenvolvimento provocados pelas súbitas reviravoltas no mercado financeiro internacional existem. Mas as elites brasileiras parecem ter terminado vítimas, depois de dez anos de resistência, da própria ideologia neoliberal, hoje em franco processo de superação em vários países do Primeiro Mundo e inteiramente inadequada para uma sociedade tão heterogênea como a nossa.
A ideologia neoliberal, que apresenta o processo de desregulação financeira como inegavelmente virtuoso, combinada com a inércia, o medo e o parasitismo de nossas elites privadas e públicas, tem sido um dos maiores obstáculos psicológicos à nossa capacidade de reagir e tentar defender a nação como espaço de solidariedade.
A reforma democrática do Estado nacional, aparentemente objetivo de todos, tem sido entorpecida pela fragmentação "collorida" que atrasou a possibilidade de formular um projeto novo de desenvolvimento com transformação produtiva e equidade social.
Nesta situação de impotência, tanto na política quanto na economia, as elites conservadoras parecem ter voltado à velhíssima idéia de que a "mão invisível do mercado" terminará por conduzir-nos, pela rivalidade e a concorrência, a uma acomodação de interesses de indivíduos –grupos, setores e regiões, onde finalmente encontraremos o "equilíbrio" e o "consenso", guiados, é claro, por lideranças iluminadas e sábias que tentarão suprimir o conflito de qualquer maneira.
No entanto, o conflito e as alianças democráticas parecem ter-se desenvolvido o suficiente para que seja possível o pacto explícito ou implicito de um novo projeto nacional.
Assim, existem fundadas esperanças de que é possível avançar, já que os pactos parciais com novos atores até recentemente subordinados e poucos ativos têm vindo em franca ascensão e é de esperar que esse movimento democrático se consolide nas próximas eleições.
Por outro lado, a ruptura da democracia e o retorno do autoritarismo explícito não parecem ser, ao contrário das crises anteriores (de 1930/37 e 1964/68), uma solução capaz de unir as elites dominantes, dado que os seus projetos segmentados e excludentes não dão conta sequer de um novo modelo de desenvolvimento econômico que englobe de forma articulada os seus interesses particulares, que dirá incluir os daqueles longamente excluídos.
Nem a face liberal econômica, nem a face política autoritária, hoje novamente tentando refazer uma velha aliança, parecem capazes de enquadrar as perspectivas de transformações contraditórias da atual conjuntura.
Assim, a agenda para uma ruptura democrática e para uma inversão real de prioridades sociais continua em aberto e é sobre ela que os embates se farão decisivos nesta eleição que se avizinha.
Os obstáculos externos continuam importantes, mas a julgar pelo comportamento dos candidatos e dos grupos de poder regional e nacional, é bem aqui, neste país-continente, que se travará a luta principal pelo nosso destino como nação democrática.

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