São Paulo, domingo, 22 de maio de 1994 |
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Desiguais na vida e na morte
JURANDIR FREIRE COSTA
Dias depois, uma mulher morreu atropelada na avenida das Américas, Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. Ficou estendida na estrada por duas horas. Como um "vira-lata", disse um jornalista horrorizado com a cena! Neste meio tempo, os carros passaram por cima do corpo, esmagando-o de tal modo que a identificação só foi possível pelas impressões digitais. Chamava-se Rosilene de Almeida, tinha 38 anos, estava grávida e era empregada doméstica. Efeito paroxístico do apartheid simbólico que fabricamos, pode-se dizer. De um lado, o sucesso, o dinheiro, a excelência profissional, enfim, tudo que a maioria acha que deu certo e deveria ser a cara do Brasil; do outro, a desqualificação, o anonimato, a pobreza e a promessa, na barriga, de mais uma vida severina. O brasileiro quer ser visto como sócio do primeiro clube e não do segundo. Senna era um sonho nacional, a imagem mesma da chamada classe social "vencedora"; Rosilene era "o que só se é quando nada mais se pode ser", e que, portanto, pode deixar de existir sem fazer falta. Luto e tristeza por um; desprezo e indiferença por outro. Duas vidas brasileiras sem denominador comum, exceto a desigualdade que as separava, na vida como na morte. Penso que esta interpretação é correta mas não esgota o sentido dos acontecimentos. Valor diferencial dos indivíduos, segundo a hierarquia de classe, sempre existiu. A vida dos ricos e poderosos sempre foi tida como "mais vida" do que a dos miseráveis. A questão é a ferocidade com que isto, agora, se apresenta. As mortes de Senna e Rosilene mostram, além da divisão social de privilégios, a progressiva privatização ou particularização dos ideais morais. A insistência em tornar Senna um herói nacional é a contrapartida do absurdo descaso com que tratamos a vida dos mais humildes. O que nele era admirável pertencia à esfera das virtudes privadas. Virtudes perfeitamente conciliáveis com as virtudes públicas, mas que não podem vir a substituí-las, porquanto pessoais e intransferíveis. Talento e vocação para habilidades específicas não se aprende no colégio. Todos podemos ser bons ou excelentes cidadãos; só alguns podem ser bons padeiros, professores, poetas ou desportistas. Um país obrigado a ter num grande corredor de automóveis o motivo único do orgulho nacional é um pobre e triste país. O problema –fique bem claro!– não é discutir o incontestável mérito de Senna. O problema é saber como pessoas que provavelmente choraram sua morte foram capazes, pouco depois, de esmagar uma mulher como quem pisa numa barata! Cada dia mais, somos levados a crer que "humano como nós" são apenas aqueles com nossos hábitos de consumo, nossos estilos paroquiais de vida, nossas características físicas, nossas preferências sexuais etc. Estamos nos convertendo a uma sociedade de "minorias" que discriminam ou são discriminadas, mas que se mostram igualmente incapazes de entender que um mundo humano, como o que conhecemos, só pode existir enquanto durar a idéia de "Homem". Além de "unidimensionais", como dizia Marcuse, estamos nos tornando "parciais e parcializados" na maneira como construímos nossa identidade. Já não nos identificamos como seres morais, cujos semelhantes são todos aqueles capazes de falarem e distinguirem o bem do mal. Humanos são os que ostentam os mesmos objetos que possuímos; que aspiram ou alcançam o sucesso mundano que nos deixa em transe ou que exibem as marcas corpóreas que temos ou queremos ter. Os outros nada são. A honra que coube a Senna era justa e legitimamente devida. Mas torná-lo um "ideal" de "identidade nacional", como muitos pretenderam, é fazer de sua memória caricatura de nossa incompetência cívica e humana. No nível da cidadania, a excelência é outra. É saber como impedir que outras "Rosilenes" sejam trituradas como lixo no asfalto, pelos possíveis amantes de corrida de automóveis. É esse o "x" do problema: mostrar que qualquer vida, pobre ou rica, famosa ou anônima, deve ser respeitada como um bem em si. O mais é exploração comercial inescrupulosa da vida e da morte dos melhores e mais honrados. Texto Anterior: Bernardo Bertolucci busca o distante país da alma Próximo Texto: Ambição desvia o homem da virtude Índice |
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