São Paulo, domingo, 22 de maio de 1994
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Bernardo Bertolucci busca o distante país da alma

BRUNA LOMBARDI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Estive com Bernardo Bertolucci três vezes nas duas últimas semanas. A primeira aqui, em Los Angeles, na abertura da Mostra Bernardo Bertolucci – com todos os seus filmes – onde assisti o seu primeiro longa-metragem "La Commare Secca" (1962), em preto e branco, com roteiro de Pier Paolo Pasolini.
A segunda vez em Nova York em um "screening" de "O Pequeno Buda" e a terceira novamente em Los Angeles onde conversamos duas horas para a gravação de meu programa "Gente de Expressão" (a ser exibido na Manchete, na próxima quinta, às 23h ) e dessa entrevista para a Folha.
Conheci Bernardo em 1981 em Roma, apresentada pelo cineasta Leon Hirszman, que tinha acabado de ganhar um Leão de Ouro no Festival de Veneza com "Eles Não Usam Black-tie". Era um período de muitas festas e justamente numa festa, na casa de Bertolucci, conversei com ele pela primeira vez.
"Eu era absolutamente megalomaníaco" ele diz hoje, rindo. "Aprendi a sofrer menos". Ele diz que expõe seus conflitos em todos os seus filmes. Que tem filmado suas questões pessoais, sua charada edipiana, seus sonhos eróticos, nesse binômio vida-cinema.
Aos 21 anos ele publicou um livro de poesias, "Em Busca do Mistério". Hoje, aos 53, continua sua investigação em busca de respostas. E para seu alívio pessoal, fez pela primeira vez um filme sem conflitos.
"Dessa vez eu não precisei visitar o inferno", ele diz.

Pergunta - Além da escolha do tema, existe alguma coisa que faz você procurar esses lugares perdidos como Butah, um desejo de se perder também?
Resposta - Existe também a vontade de ir o mais longe possível do meu país. No começo dos anos 80 a Itália teve um grande e maravilhoso boom econômico, e com ele a corrupção, o cinismo. E eu tinha a sensação de não conseguir encontrar a inspiração para fazer meus filmes num país tão horrivelmente corrupto quanto a Itália dos anos 80. Então fui embora para muito longe, o mais longe possível. Essa corrupção é que me impedia de fazer filmes, e na minha opinião, resultado de consumismo muito forte que se expandiu em todo o Ocidente. E eu pensei: vou para um país pré-consumista. E fui pra China. A China de 83, 84 era maravilhosa. Agora também lá existe um boom econômico. Vamos ver o que acontece. Quem sabe o consumismo consiga destruir algumas tradições que existem há quatro mil anos.
Pergunta - E o que conduziu você ao budismo?
Resposta - Na China comecei a sentir muito forte a sedução do Oriente. E depois dessa escola, achei no budismo a síntese de muitas coisas que eu tinha compreendido durante meu projeto de "O Último Imperador". Quando filmei "O Céu que nos Proteje", eu telefonei para minha mulher do Saara para Londres e disse: "Aqui está super difícil, estou filmando a agonia de um casal, um casal que desmorona". Dois dias depois ela me manda um fax dizendo: "Aí uma relação está desmoronando. Aqui desmoronou o Muro de Berlim". E com isso, tantas ideologias caíram, que me pareceu que não havia mais espaço para sonhar grandes utopias. No budismo encontrei ainda um pouco de espaço para sonhar, para me deixar levar por certo idealismo, que eu confesso sempre ter tido.
Pergunta - E você, particularmente, estava procurando essa religiosidade?
Resposta - Encontrei no budismo a religião que não é uma religião. Porque Buda disse: chega de deuses, agora é o homem como centro do universo. Isso me atraiu porque eu era a contradição de tudo aquilo em que eu acreditava. O budismo é mais uma filosofia do que uma religião. E depois tive um encontro com o Dalai Lama. Ele tem uma alegria de viver contagiante. Uma alegria de viver que eu tinha perdido. Passei dois anos com os tibetanos e economizei muito dinheiro em tranquilizantes.
Pergunta - O budismo ensina a perder o ego. Você pessoalmente também busca perder o seu ego?
Resposta - A nossa sociedade é essencialmente baseada na glorificação do ego, quero dizer: para ser feliz um sujeito precisa se sobressair da massa, estar acima dela. Na China a gente aprende que os chineses conseguem ser felizes como parte da massa. Eu andava pela Cidade Proibida de Pequim onde filmei "O Último Imperador" e perguntava para o guia: "Quem fez esse afresco? Quem é o arquiteto desse pavilhão? Quem esculpiu essa imagem?". E a resposta era: Ming Dinasty, Ching Dinasty, 1233, 1640, mas nunca um nome.
Foi uma lição interessante pra mim. É preciso ter com o ego uma relação mais relaxada.
Pergunta - Mas sendo um diretor premiado com nove Oscars, cercado de gente que lhe adora e que lhe adula, como consegue trabalhar seu ego?
Resposta - Você quer dizer que é fácil ter seu ego alimentado... Bom, acho que é melhor eu ser sincero, porque olhando seus olhos verdes de gata, percebo que se eu não for sincero você vai perceber de qualquer forma. Eu tive um momento de megalomania, nos anos 70, depois de ter feito "O Último Tango em Paris". Tive a sensação de que poderia ter feito tudo aquilo que eu queria. Então resolvi fazer "1900", que é um filme que conta o nascimento do socialismo no norte da Itália. E foi aí que decidi que queria fazer o filme mais longo. "Quero que esse filme seja uma ponte entre a União Soviética e os EUA", disse.
Lembro que, um dia, eu estava com Francis Coppola, em Nova York – tinha acabado de fazer "1900" e ele ia começar 'Apocalipse Now" –, e na véspera de partir para as Fillipinas, ele me disse: "Vou fazer um filme um minuto mais longo que '1900'. Estávamos os dois nessa egotrip.
Pergunta - Você me disse que basta ver seus filmes para lhe conhecer...
Resposta - É verdade. Outro dia, vendo todos os títulos dos meus filmes, pensei: "Veja você a história da minha vida é a história dos meus filmes". Quero dizer, tudo é muito óbvio, não há nenhum segredo na minha vida. Se você quer saber o que eu pensava em 1972, eu era obcecado pela idéia de encontrar uma relação com uma mulher, que não fosse nos moldes sociais, mas uma relação onde a gente se conhecesse e pudesse se comunicar somente através do corpo, da linguagem do corpo.
Pergunta - Quer dizer que "O Último Tango" seria um sonho sexual seu?
Resposta - Seria um sonho de comunicação através da sexualidade. Outra coisa que me acontece é que eu não sou absolutamente consciente do que estou criando. Compreendo meus filmes depois, mais tarde. Por exemplo, outro dia assisti "La Luna", depois de muito tempo e eu não dormi a noite inteira. Agora entendo a cara do público em 1979, na estréia no Festival de Nova York. Eles me olhavam com desprezo, ódio...
Pergunta - Você tinha tocado em um tema tabu...
Resposta - Exato, mas eu não sabia que o filme era tão forte quando eu fiz. É como alguém que não tem controle do que faz. Como para mim a vida e o cinema são super ligados, não ter total controle do que filmo é como não ter total controle de mim mesmo.
Pergunta - Você diz que a poesia de seu pai, o poeta Attilio Bertolucci, era submissa à repressão e que você fez "O Último Tango" para se libertar dessa repressão.
Resposta - É um pouco como Sidarta, que fica no palácio do pai, protegido, e até os 26 anos nunca ouviu falar em morte, sofrimento, dor. Eu durante muito tempo, quando era jovem, vivi dentro do universo do meu pai, que era baseado na poesia. Até que eu tive que sair dessa gaiola. Meu pai tem 83 anos e está ótimo. A figura dele foi muito determinante na minha vida. E fui um filho a vida inteira. Tenho a sensação que vou passar da adolescência à velhice, sem conhecer a maturidade.
Pergunta - Nos seus filmes, no fundo, a transgressão é sempre punida, os conflitos sempre acabam tragicamente. Você acha que é uma questão moral?
Resposta - Se é, eu prefiro esquecer, porque eu não suporto o moralismo, eu o odeio porque o sofri pessoalmente. Quando lancei "O Último Tango" na Itália, o filme foi condenado a ser queimado... Como as bruxas. E eu fui condenado a dois meses de prisão, com condicional, e até isso me deu um certo prazer do martírio.
Pergunta - Qual era a acusação?
Resposta - Obscenidade. Mas daí descobri que eu não podia votar. Por cinco anos perdi meus direitos civis. Isso foi muito duro.
Pergunta - O filme não é obsceno.
Resposta - Hoje seria um filme para freiras. Por isso sou totalmente contra a censura. Deveriam é proteger as crianças contra a idiotice a subcultura que a televisão geralmente oferece. Na Itália, nas últimas eleições, o grande magnata da TV, Berlusconi, em três meses fundou um partido e venceu as eleições. Tamanho é o poder da TV. Eu me pergunto por que não usar a televisão de uma forma cultural. Agora ela é só uma vitrine do consumismo e da mediocridade. E poderia ser uma fantástica escola para todos.
Pergunta - Você, como católico italiano, é cheio de culpas?
Rsposta - Eu sou católico. Aos 13 anos deixei de acreditar, mas acho que já era muito tarde, porque o acúmulo de culpas já era extraordinário. Eu sou uma montanha de culpas! Muitas vezes você pensa que é movido por alguma motivação inconsciente, mas o que faz mover é o sentimento de culpa.
Pergunta - E você tenta se libertar dessa culpa?
Resposta - Eu não sou budista, me fascina a coisa toda e fico procurando essa alegria de viver depois de tanta dor em "O Céu que nos Protege". Eu me pergunto se é certo fazer um filme assim tão punitivo. Eu via o público sair do cinema desarvorado.
Pergunta - Por isso, você procurou um filme sem conflitos como "O Pequeno Buda"? Você queria se libertar dos seus conflitos através desse filme?
Resposta - Acho que sim, que dessa vez não fiz um filme conflituado. Isso é uma coisa muito nova para mim. É a primeira vez que faço um filme que não termina mal, tragicamente. Sinto um certo alívio. E nunca antes eu trabalhei com crianças. Eu descobri nesse filme que hoje em dia as crianças tem uma síndrome nova: o medo da morte. Quando eu era menino, a morte não existia. Mas hoje eles vêm na TV guerras, violência...
Pergunta - A informação da morte é muito presente.
Resposta - Exato. No meu tempo nós éramos imortais. Só depois de adultos descobríamos o oposto. Então essas crianças vendo no filme a idéia da reencarnação ficaram fascinadas.
Pergunta - Qual é a tua angústia mais constante, permanente?
Resposta - Acho que tenho muitas. Talvez a de enlouquecer, de não ser mais capaz de distinguir a realidade da fantasia. A ponto de não distinguir o cinema da vida.
Pergunta - Sidarta diz: "Aprender é mudar". Depois de tudo, em que você acha que basicamente você mudou?
Resposta - Você pode ver nesse filme. O que a gente disse antes, o fato de que nesse filme eu não precisei ir ao inferno dos meus filmes anteriores. E romper essa relação com o sofrimento, como se só isso fosse criativo. Mas é possível ser criativo também na serenidade.
Pergunta - Aos 20 anos você publicou um livro de poemas chamado "Em Busca do Mistério". Quer dizer, você não mudou tanto assim, você continua procurando o mistério...
Resposta - É verdade, de fato nesse filme coloquei uma poesia budista que chama "O Sutra do Coração", que diz: A forma é vazia, o vazio é a forma. Não mais olhos, não mais orelhas, nem nariz, não mais sensações". Ainda tenho uma forte relação com a poesia. Quando nos meus filmes tenho um nó psicológico, que não sei resolver, recorro à poesia.
Pergunta - Depois de todos esses caminhos, para onde você imagina ir?
Resposta - As razões que me afastaram da Itália, o cheiro sufocante da corrupção, mudaram. Um movimento de juízes fez as coisas mudarem. É claro que para mudar não adianta apenas pôr na cadeia mil homens corruptos. É preciso que todos façamos um exame de consciência para ver que fomos nós que elegemos esses corruptos.
Mas nas últimas eleições, vimos os jovens votando à direita, alguns até no partido neofascista, que dobrou seus votos. O que aconteceu? Eles perderam a memória histórica. Votam no fascismo porque são ignorantes, não tem informação.
Eles são também vítimas da moda, votam no fascismo como compram o tênis. Então pensei em fazer a terceira parte de "1900". Agora, eu filmaria a segunda metade do século. E talvez eu o fizesse para a TV, como uma minissérie. Assim não precisaria cortar meu filme. E poderia preencher a amnésia de muita gente.
Pergunta - Você parou de fazer sua terapia?
Resposta - Isso é muito pessoal. A terapia, mesmo que você pare, nunca pára, você sempre continua vendo de vez em quando seu analista. No budismo, seu guru quer que você prossiga sem ele. E você segue sozinho, com medo, mas nota, de repente, que ele continua a seu lado. A terapia analítica não termina nunca, mesmo Freud dizia que você nunca se livra totalmente das neuroses.
Pergunta - Você acredita em reencarnação?
Resposta - Sou fascinado pela idéia, mas não sendo tibetano, não tenho isso no meu DNA. Acho que é a metáfora de continuidade. Continuidade de uma cultura. Acredito na reencarnação das idéias, do ensino, da poesia.
Pergunta - Essas idéias diminuíram seu medo da morte?
Resposta - Você está avançando demais nas suas perguntas. Medo de morrer? Além do mais você está falando com um hipocondríaco. Eu lembro continuamente da morte. Tenho medo dela. Mas o que vou fazer?
Pergunta - Na próxima reencarnação quem você gostaria de ser?
Resposta - Tenho um lado feminino muito forte, não acharia ruim renascer mulher, mas... Tem uma poesia do Borges belíssima, ele foi muito curioso a respeito do budismo, e nessa poesia sobre a reencarnação ele diz: "Um peixe reluz no oceano. E o homem de Agrigento se lembra, que muito tempo atrás, ele era o peixe".
GENTE DE EXPRESSÃO - Entrevista de Bruna Lombardi com Bernardo Bertolucci. Na quinta, dia 26, às 23h; reprise no sábado, dia 28, às 13h30. Na Manchete.

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