São Paulo, domingo, 22 de maio de 1994
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Entidades aceleram viagem ao ex-Brasil

No Brasil, índios e brancos têm legislações distintas

JANER CRISTALDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em artigo para este caderno, no domingo passado, a professora Alcida Rita Ramos questiona minha titulação. Com uma obstinação de ministro brasiliense procurando cadáveres na Venezuela, deu-se ao trabalho de buscar meu nome jornalístico no banco de dados da Université de la Sorbonne Nouvelle e não o encontrou na lista de seus doutores. Nada de anormal. Meu sobrenome é Ferreira Moreira.
Para que dona Alcida não despenda mais cruzeiros em suas consultas, declino o título de minha tese: "Approches d'un thème litteraire: la révolte chez Albert Camus et Ernesto Sábato". Foi defendida em março de 1981, na sala Bourjac da Sorbonne, ante uma banca constituída pelos professores Daniel Pageaux, Paul Verdevoye e Denise Brahimi. Menção? "Très Bien". Há uma tradução ao português, publicada pela editora da Universidade Federal de Santa Catarina, sob título "Mensageiros das Fúrias".
Voltando ao "massacre" dos ianomâmis: não há crime sem cadáver, remember Dana de Teffé. Nem mesmo morte sem cadáver, vide Ulysses Guimarães, cujo passamento só foi reconhecido um ano depois do fato. Mais ainda: massacre exige muitos cadáveres, e não uma ossada antiga, como a encontrada pelo ministro da Justiça... na Venezuela.
Desde quando autoridades brasileiras podem invadir um país vizinho para a investigação de qualquer delito? O artigo do procurador Veiga Rios, publicado neste caderno, arrola até fios de cabelo como indícios do "massacre" dos ianomâmis. Ora, se adotarmos esta linha de raciocínio, ocorre pelo menos um genocídio por dia em cada salão de barbeiro no Brasil.
Por afirmar um princípio básico de direito, de repente passei a ser comparado a Goebbels e Hitler, como se em algum momento tivesse defendido o extermínio dos aborígenes. Jamais neguei a ocorrência de eventuais mortes na selva. Se ocorrem nas cidades, onde há uma força policial, por que não ocorreriam em territórios onde não existe a presença física da lei? O cerne da questão é outro.
Matar índios é crime? É óbvio, e seus assassinos devem ser punidos. Como também devem ser punidos os índios que matam e estupram, matem ou estrupem índios ou brancos. Em que prisão estão –reitero a pergunta– os indígenas que mataram 62 funcionários da Funai? Onde estão os txucarramães, que, liderados por Raoni, mataram 30 peões? E Paiakan, saudado pela imprensa americana como "o homem que pode salvar a humanidade", quando será condenado por ter enfiado as mãos na vagina de uma adolescente?
Os índios brasileiros receberam carteirinha de 007, com licença para matar. Com a diferença de que James Bond não tinha direito a estuprar. Passo uma pergunta aos defensores incondicionais dos indígenas: se você tem uma filha adolescente, não ficaria um tanto preocupado tendo Paiakan como vizinho de apartamento?
O massacre de 62 ashaninkas no Peru, com cadáveres expostos à imprensa –ocorrido no mesmo mês de agosto em que se denunciava a suposta chacina dos ianomâmis– não rendeu manchetes. Tampouco gerou maiores protestos internacionais. Índio peruano não serve como bandeira. O Peru não tem uma Amazônia tão vasta e apetitosa como a brasileira. Sem falar que os 62 índios peruanos foram massacrados pelo Sendero Luminoso, e não é politicamente correto denunciar o terrorismo das esquerdas.
Com a premonição inerente ao gênio, Eça de Queirós viu, há mais de século, mais precisamente em 1890, um Brasil partido em cacos. "Com o império, segundo todas as probabilidades, acaba também o Brasil. Este nome de Brasil, que começava a ter grandeza, e para nós portugueses representavam um tão glorioso esforço, passa a ser um antigo nome da velha Geografia Política. Daqui a pouco, o que foi o Império, estará fraccionado em Repúblicas independentes, de maior ou menor importância". Ao final de seu ensaio, Eça remata: "Haverá talvez Chiles ricos e haverá certamente Nicaráguas grotescos. A América do Sul ficará toda coberta com os cacos dum grande império".
Eça não abordava a questão indígena, mas já intuía uma desintegração territorial. Um século depois, juristas, militares e jornalistas parecem não ter percebido que já existem no Brasil legislações distintas para índios e brancos. E a Funai, Igreja e ONGs parecem estar desejando acelerar a visão premonitória de Eça, transformar o Brasil em um conglomerado de Nicaráguas grotescos.
Por ocasião da "chacina", a revista "Time" deu com precisão espantosa o número de indígenas que existiam no Brasil no ano de 1500, quando aqui chegou Cabral: cinco milhões. Nas entrelinhas está afirmando que o branco europeu produziu mais um holocausto. Os portugueses deveriam ter um serviço de recenseamento de uma eficácia fantástica para contar índios esparramados pelo país todo, pois cinco séculos depois não se sabe se os ianomâmis são de fato dez mil.
Os palestinos invocaram o deus errado ao pedirem a Alá um magro território no deserto. Tivessem-no pedido a Brasília, teriam um país de fazer inveja aos filhos de Davi. Se Alá é grande, a Funai é maior.

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