São Paulo, domingo, 22 de maio de 1994
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Sociedade brasileira quer viver metáfora

A dissimulação nos impede de aceitar os genocídios no país

MEMÉLIA MOREIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A sociedade brasileira que, desde sua formação, internalizou mitos a ela impostos pelos invasores dos século 16 e 17 rejeita, epidermicamente, adjetivos sempre empregados a outros povos e quer viver, na prática, a metáfora de um "povo risonho e feliz". Dessa forma, não manifestamos qualquer reação quando a palavra "genocida" se associa ao adjetivo alemão. Esquecemos, entretanto, que franceses, ingleses, belgas e holandeses, ainda na segunda metade de nosso século foram responsáveis por dezenas de genocídios contra povos africanos e asiáticos.
Alemães são genocidas, italianos, falanteadores e franceses, democratas. E nós, somos um povo pacífico, simpático, "por natureza". Essa a metáfora que queremos transformar em real. Esse nosso mais precioso mito. Fantasias à parte somos, também, genocidas. Uma sociedade que assiste, cúmplice, a matança das crianças. Menores de rua existem em Budapest, Madri, Assunção. Aqui, eles são mortos. Estão nas ruas enquanto sobrevivem às chacinas e assassinatos isolados. E nós nos calamos.
É esta dissimulação coletiva, impregnada, tal carrapato, em nosso inconsciente que nos proíbe aceitar os genocídios cometidos pela sociedade brasileira. Somos, a exemplo de todos os povos dominadores, genocidários. Responsáveis pelo genocídio dos Cinta-Larga, conhecido por "Massacre do Paralelo 14", na década de 60, pela redução populacional dos Waimiri-Atroari, na década de 70. Pelo genocídio contra os ciganos na Paraíba, pelas crianças mortas em ruas e praças do Rio de Janeiro, São Paulo, Belém, Recife, Fortaleza... Genocidas por omissão.
Novamente, o sr. Janer Cristaldo se manifestou sobre a questão indígena. E, como sempre, com total desconhecimento do assunto.
O que aconteceu em Haximu nos últimos dias de julho de 1993, queiram ou não os defensores dos mitos e das ideologias racistas, foi um genocídio. A definição desta palavra se encontra em qualquer dicionário de pequeno porte e, principalmente, no Código Penal Brasileiro. Ianomâmi, como palestinos de Sabra e Chatila, somalis e etíopes estão sendo massacrados. Seus algozes, apesar disso, não se sentam nos tribunais de Nuremberg porque aos vencidos não é dado o direito de defesa, de denúncia.
Somos, apesar das nossas aparências, genocidas. Propositadamente, ou não, seguimos práticas dignas de um Adolf Hitler e exterminamos grupos frágeis (crianças) ou minoritários (ciganos, índios) e os deserdados de um modo geral, entre eles, favelados das miseráveis metrópoles brasileiras que nos obriga a viver cenas de perversão social tal como da família de Recife que retornou ao canibalismo nos lixos de hospitais pernambucanos.
Haximu foi o pico do genocídio contra os ianomâmis. Lá morreram 16 seres humanos (difícil, para o sr. Cristaldo acreditar que sejam humanos). Um genocídio que vem num crescendo desde 1988, quando o jovem Romero Jucá Filho, por indicação do general Ruben Bayma Denys, foi nomeado governador de Roraima, fechando a área ianomâmi a pesquisadores, jornalistas, médicos, testemunhas de um modo geral, abrindo-a, entretanto, aos garimpeiros, homens que, expulsos da produção da riqueza perderam amor à vida, porque ela vale menos que uma pepita encontrada no rio Mucajaí.
Em Haximu houve um genocídio e, para quem gosta de estatísticas, mais um dado: os 16 mortos, se comparados à população nacional representam 180 mil brasileiros desaparecidos subitamente. Ou seja, o massacre de Haximu, comparativamente, matou mais que a guerra da Bósnia, que se arrasta há três anos.
Esse massacre foi semelhante ao vivido pelos Waimiri-Atroari na década de 70. O sr. Cristaldo, referindo-se aos Waimiri-Atroari, traz uma macabra estatística de funcionários da Funai mortos por estes índios: 32. De fato, lamentavelmente, 32 foram mortos. Talvez, por desconhecimento, o autor do artigo não tenha citado o número de Waimiris mortos na mesma época. Em 1974, aquele povo, que vive ao sul de Roraima, era composto por uma população que passava de mil pessoas. Hoje, não chegam a 600. Não há registro oficial sobre suas mortes. Nem sequer uma explicação sobre as bombas de napalm que flutuavam no rio Abonari, dentro da área indígena. Naquela época, este grupo resistia contra a construção da rodovia BR-174 (Manaus-Caracaraí), sob a responsabilidade do 6º Batalhão de Engenharia e Construção do Exército. A estrada foi construída e os índios reduzidos.
Janer Cristaldo se surpreende com a liberdade de Paulo Paiakã e Irekran, depois do drama que os envolveu, em maio de 1992. Em liberdade, também, se encontram os responsáveis pelo massacre de Haximu, da Candelária, dos 111 presos do Carandiru. Em liberdade, também se encontram os salteadores do nosso orçamento e alguns dos responsáveis pelas dezenas de planos econômicos que têm nos levado a viver abaixo da linha de miséria.
Ele também alerta contra as ONG's (Organizações Não-Governamentais). É verdade que não há controle de suas atividades. E essa liberalidade é também omissão social e governamental de nosso país. As autoridades fecham os olhos porque grande parte dessas organizações financiam projetos paliativos em defesa dos deserdados. A força dessas organizações é fruto da falência do Estado brasileiro.
Apesar de todas as preocupações, o sr. Cristaldo pode dormir tranquilo. Não há qualquer risco de os "capacetes azuis" desembarcarem na foz do Rio Negro ou na serra das Surucucus (ou será que seriam os "blues soldiers" do general Custer?). Os capacetes azuis trocaram a incômoda indumentária por colarinhos brancos e já estão instalados em pontos estratégicos do território brasileiro: Projeto Grande Carajás, controlados por grupo transnacional, Madeireira Nacional S.A., no Estado do Amazonas, controlado por um grupo de estrangeiros onde (aí, sim), não podemos circular e, principalmente na avenida Paulista, longe de malárias, mosquitos, oncocercoses, no genocídio asséptico que rejeita sua essência piedosamente omissa e truculenta.

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