São Paulo, domingo, 22 de maio de 1994
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O PEDREIRO DO VERSO

JOSÉ GERALDO COUTO

O realismo socialista era uma coisa válida para os países socialistas; Zhdanov queria que os poetas cantassem a grandeza da União Soviética
Folha - Nessa discussão sobre o fim do suporte nas artes plásticas –hoje não se fazem mais pinturas ou esculturas, mas instalações, intervenções etc.–, o sr. teme que isso possa levar a uma espécie de vale tudo, de total falta de critérios...
João Cabral - Eu acho. Eu tenho a impressão de que a evolução não se dá com salto triplo, se dá com salto à distância, compreende? Quer dizer, o sujeito não pode evoluir três estágios à frente do que estão fazendo à sua época. Você procura partir de sua época e dar um passo à frente, e não de repente dar um salto de 17 metros, como é o salto triplo.
Folha - Na poesia há quem veja também um impasse análogo, a necessidade de a poesia, para sobreviver, se combinar com outros meios...
João Cabral - Eu não vejo impasse na poesia. Ela tem uma evolução natural, cada pessoa tem sua voz e deve chegar ao extremo dela. Eu acho que é possível escrever poesia ainda hoje sem recorrer a esses outros meios. Numa tese que apresentei nos anos 50, num congresso de poesia, eu digo que os poetas não estão usando devidamente o rádio, a televisão e outros meios de comunicação modernos. Agora, está claro que você não vai usar esses meios modernos escrevendo sonetos. Se você for utilizar esses meios você tem que adaptar a sua poesia a eles.
Folha - O artista plástico Luiz Paulo Baravelli escreveu certa vez que "há arte demais no mundo". Levando em conta não só a poesia ruim que se publica, mas também a linguagem floreada e sentimental usada pelos políticos e por setores da imprensa, da televisão e da publicidade, o sr. diria que "há poesia demais no mundo"?
João Cabral - A Elisabeth Bishop, poetisa norte-americana extraordinária que viveu no Brasil muitos anos e traduziu diversos poetas brasileiros, inclusive eu, dizia que o mal da poesia brasileira era o excesso de sentimentalidade. Eu tenho a impressão de que, de fato, a curva de derrapagem da nossa poesia é a sentimentalidade. Muita gente confunde poesia com sentimentalidade.
Folha - O sr. fez poemas sobre jogadores de futebol e toureiros. Acharia possível fazer um poema para a Fórmula 1?
João Cabral - Acho que sim. Por que não? Acho que não há assunto fora da poesia, nem assunto dentro da poesia. A poesia está na maneira como você trata o assunto. Você veja que na minha poesia eu procurei tratar de assuntos os mais prosaicos.
Folha - Até a aspirina.
João Cabral - Pois é. A aspirina, aliás, para mim não é nada prosaica. Eu a comparo a um sol. Depois é que eu soube que a aspirina é euforizante. Tenho a impressão de que essa minha depressão hoje é falta de aspirina. Resolvi tomar uma por dia (eu tomava seis), mas, como eu não tenho mais dor de cabeça, eu esqueço.
Folha - O sr. disse que a aspirina tem um efeito euforizante. Imagino que, pela sua própria concepção do fazer poético, o sr. deva rejeitar todo tipo de droga ou auto-indução no momento de escrever.
João Cabral - Ah, sim. Quero escrever sempre em plena consciência. Até o Rubem Braga, que era um bom copo, dizia que só escrevia as crônicas dele quando estava perfeitamente sóbrio.
Folha - Voltando ao futebol. O sr. continua acompanhando?
João Cabral - Não vou mais ao estádio, mas acompanho. Gosto muito de futebol. Fui campeão juvenil de Pernambuco pelo Santa Cruz, em 1935, quando tinha 15 anos. Sempre me interessei muito por futebol.
Folha - Existe algum jogador atual que poderia motivar um poema seu, como foi o caso de Ademir da Guia?
João Cabral - Tem. Esse Jorginho, por exemplo, eu acho um craque. Bebeto, Romário, também. Eu não era atacante, sabe? Eu jogava de "center-half", que corresponde hoje mais ou menos ao número 5: distribuía o jogo e defendia ao mesmo tempo a cabeça-de-área. Eu fui campeão pelo Santa Cruz, mas o meu clube era o América do Recife. Por isso que aqui no Rio eu sou América, e em São Paulo eu sou Palmeiras, porque verde era a cor do América.
Folha - O sr. acha que o Brasil tem condições de ganhar essa Copa do Mundo? Concorda com a filosofia do Parreira?
João Cabral - Acho que tem condições. Quanto ao técnico, eu sou de um tempo em que o técnico era um cidadão que apenas escalava o time e soltava dentro do campo para jogar. Agora, o técnico é um sujeito que quer jogar xadrez. A tendência do futebol brasileiro é querer jogar igual ao futebol europeu. O futebol-força e velocidade. Eu gostava de um jogador como Ademir da Guia porque era um jogador que jogava cadenciado. Nele eu via o futebol brasileiro. Para mim foi sempre o forte do futebol brasileiro um jogo cadenciado. O brasileiro joga futebol como quem toca um instrumento musical. Tenho a impressão de que isso se deve em parte ao contingente de sangue negro na população brasileira. O brasileiro joga com um ritmo diferente. Agora, você vê a crônica esportiva, os locutores usam "ritmo" no sentido de "velocidade". Quando dizem que um time está jogando "com ritmo", querem dizer que joga com velocidade. Ritmo não é velocidade, ritmo é cadência. Ela pode ser rápida ou pode ser lenta.
Folha - O que interessa ao sr. em certos jogadores de futebol, assim como em certos toureiros, é justamente o ritmo e a precisão –que é o que permite um paralelo com o fazer poético, não é?
João Cabral - Exato. Naquele poema "Alguns Toureiros" eu digo que aprendi com Manolete a não poetizar o poema. Porque esse é o problema de muito poeta: é que ele faz um poema poético. Quer dizer, faz um poema a partir de elementos já convencionalmente poéticos. Ele perfuma a flor. É como se você planta uma rosa e depois acha que a rosa não está cheirando o suficiente e aí põe, em cima da rosa, perfume de rosas para ela cheirar mais (risos). Eles perfumam o poema. Existem toureiros que fazem isso também, floreiam demais o jogo.
Folha - No futebol, o jogador que faz isso seria o "firuleiro", o que faz muita "firula". O sr. disse uma vez que não gosta do futebol da Espanha. Por quê?
João Cabral - Mário de Andrade dizia que a única coisa de que ele não gostava de Minas era o queijo. Eu digo que a única coisa da Espanha de que eu não gosto é o futebol. O andaluz talvez pudesse jogar um futebol cadenciado como o nosso. Mas acontece que na Europa predomina o futebol-força e o espanhol procura jogar à européia, não à latino-americana. Os africanos –os Camarões, por exemplo– têm um jogo muito mais próximo da América Latina do que da Europa.
Folha - O sr. sempre se considerou mais pernambucano do que propriamente brasileiro...
João Cabral - Eu acho que há uma cultura nordestina. O sujeito não pode entender minha poesia como a poesia de um brasileiro qualquer. É de um brasileiro de uma determinada região. Eu sou brasileiro na medida em que sou nordestino, e sou nordestino na medida em que sou pernambucano. Você não pode ser brasileiro "em geral". Eu não conheço o Amazonas, estive em Porto Alegre uma vez, nunca fui ao Mato Grosso. Como é que eu posso me dizer brasileiro "em geral"?
Folha - Como o sr. vê essas tendências separatistas surgidas no Sul do país?
João Cabral - Isso não tem muito sentido. É oportunismo político. Aliás, há uma coisa muito interessante. Você vê, a América espanhola se dividiu toda, não é? Porque a Espanha é um país centrífugo: nela convivem regiões diferentes, com culturas muito diferentes. Ao passo que Portugal é um país centrípeto. Portugal só existe na medida em que ele tiver consciência dele próprio, porque senão é engolido. É um pedacinho da península Ibérica. E nós herdamos dos portugueses esse espírito centrípeto. Por isso é que a América portuguesa ficou unida. Não vejo nenhum futuro para o separatismo.
Folha - Nas eleições presidenciais de 89, o sr. disse que votou, no primeiro turno, no Roberto Freire, e no segundo, no Lula – ambos por serem pernambucanos. Este ano, aparentemente só tem um pernambucano na disputa, o Lula. Seu voto é dele?
João Cabral - A lei eleitoral dispensa o voto dos maiores de 70 anos. Como estou tão ruim da vista, seria um sacrifício para mim ir votar. Aliás, nem sei mesmo se eu conseguiria distinguir a célula branca da amarela. Agora, se eu tivesse de votar, não sei. Não se sabe ainda quem são os candidatos. Pode ser que até lá apareça um outro pernambucano, não é? (risos)
Folha - Na época em que o sr. começou a escrever, e especialmente depois da guerra, havia uma grande solicitação para que os artistas participassem da luta política. Havia os escritores católicos e havia os escritores de esquerda, comunistas. O sr., apesar de ter formação católica, não era mais católico. Com que linha política o sr. se identificava?
João Cabral - Olhe, quando, depois da guerra, o Zhdanov começou a pregar o tal realismo socialista, houve essa grande cisão. O realismo socialista foi mal entendido no mundo todo, inclusive na França, onde provocou uma porção de coisas da pior qualidade. Agora, o problema desse negócio de poesia social é que os sujeitos que defendiam a poesia social escreviam para dizer "É preciso fazer poesia social ", mas não faziam poesia social. Faziam poesia programática. Agora, a poesia social, uma poesia que alcançasse o povo, eles não faziam. Eles ficavam na pregação de princípios. Fazer poesia para o povo começaria por usar formas populares.
Folha - É um pouco o que o sr. tentou fazer com "Morte e Vida Severina" e "O Rio". Mas uma vez o sr. se lamentou que esses poemas não chegavam propriamente ao povo.
João Cabral - Esse negócio de povo é uma coisa muito difícil. Eu acredito que esses poemas não cheguem, vamos dizer, ao interior de Pernambuco, onde o sujeito está acostumado a romance de cordel, mas ao público de classe média têm chegado. Você sabe que "Morte e Vida Severina" continua sendo levada? Ainda agora está sendo levada na Ilha do Governador por esse Teatro da Terceira Idade. E chegou até a televisão. Mas eu não creio que o sertanejo se interesse por "Morte e Vida Severina". Tem gente do povo que se interessa por "Morte e Vida Severina" e tem gente que é povo para quem "Morte e Vida Severina" não diz nada. Há muitas camadas de "povo", principalmente num país como o nosso de analfabetismo e falta de instrução.
Folha - Pelo que entendi, o sr. acha que o realismo socialista de Zhdanov foi mal interpretado. Mas a idéia original era boa?
João cabral - Era uma coisa válida para os países socialistas. O que o Zhdanov queria era que os romancistas e os poetas cantassem a grandeza da União Soviética. Agora, o francês, por exemplo, não tinha por que cantar a grandeza da França. Se ele cantasse a grandeza da França, ele não estava fazendo realismo socialista, porque a França não era um país socialista. Quer dizer, o realismo socialista não era uma arte crítica. Para ter realismo socialista fora da União Soviética, teria que ser uma arte crítica. E isso o Zhdanov não viu. Porque ele pregou as idéias dele para a União Soviética. O erro foi transplantar essas idéias para uma situação diferente. Isso fez muito mal, por exemplo, para a pintura francesa.
Folha - O sr., evidentemente, concordava com aqueles que defendiam uma arte participante...
João Cabral - Pois é, uma poesia que chegasse ao povo. Eu achava que a poesia estava fechada demais e tentei abri-la um pouco mais. Mas depois eu vi que era um negócio muito difícil por essa coisa de que o leitor no Brasil é a elite, de forma que você, queira ou não queira, acaba escrevendo para essa elite. Como é que você vai escrever para o sertanejo, que não sabe nem ler?
Folha - Uma coisa da qual o sr. raramente fala é de cinema. O sr. foi sócio da cinemateca de Londres, não é verdade?
João Cabral - É. Eu fui maníaco de cinema. Em Londres existiam muitos clubes de cinema, e eu era sócio de uma porção deles. Praticamente toda noite eu ia com minha mulher a um cineclube desses. Eles passavam filmes antigos, clássicos, de forma que eu praticamente vi toda a história do cinema.
Agora, cinema contemporâneo mesmo, eu via muito até ir para a Europa, porque aqui no Brasil era legendado. Quando eu cheguei na Espanha, encontrei o cinema dublado, que me tirou completamente o interesse pelo cinema. Porque você vê um grande ator sendo dublado por um ator de segunda, perde completamente o impacto. Infelizmente, por essa coisa de viver no estrangeiro, eu não sei nada do cinema brasileiro. Nunca vi um filme de Glauber Rocha, nem de Nelson Pereira dos Santos.
Folha - Qual foi o último filme que o sr. viu?
João Cabral - Faz uns dois anos, uma filha minha me levou em Copacabana para ver aquele filme chinês, "Lanternas Vermelhas". Gostei.
Folha - Sempre houve uma grande sensualidade na sua poesia, mesmo nos primeiros livros, até no uso das expressões "macho" e "fêmea" atribuídas a cidades, regiões, objetos.
João Cabral - Pois é. Talvez essa sensualidade tenha se tornado depois mais explícita, ao escrever sobre Sevilha. Sevilha é uma cidade muito feminina, e eu escrevi muito sobre bailarina de flamenco. Mas, como você viu bem, antes da Andaluzia já havia sensualidade em minha poesia.
Folha - O sr. se queixou numa entrevista de que a crítica não tinha percebido o humor presente em sua poesia. Pode falar um pouco sobre isso?
João Cabral - A crítica percebe outro tipo de humor. Você vê, por exemplo, o meu livro "Dois Parlamentos". Um é sobre o problema da seca no Nordeste, outro é sobre o trabalhador da zona da mata. São duas situações injustas diante das quais eu, em vez de fazer uma poesia me apiedando dessas situações, dou uma vaia nelas.
Quer dizer, é um pouco a técnica do Jonathan Swift no livro "The Country of the Houyhnhnms", que aliás é o título de um poema meu. É uma terra em que os cavalos são os homens e os homens são os criados dos cavalos. Ele descreve o homem como um animal sujo e inferior, e os cavalos é que mandam. Quer dizer, esse tipo de humor que eu uso é um humor swiftiano. Mas eu tenho a impressão de que não se lê muito Swift no Brasil.
Folha - Há outros poemas seus que têm um humor muito franco, direto. Por exemplo, aquele que diz que quem vai primeio para o inferno são os motoristas de táxi, porque apesar de pagos sempre fazem seu trabalho a contragosto...
João Cabral - Ou quem está atrás de um guichê. Basta você pôr um sujeito atrás de um guichê, imediatamente ele se transforma, vira um pequeno ditador (risos).
Folha - Como é que é o seu dia-a-dia hoje?
João Cabral - Meu dia-a-dia foi sempre ler. Agora, como eu não posso ler, eu ouço rádio.
Folha - Dentro da poesia brasileira moderna, qual é, a seu ver, sua contribuição pessoal?
João Cabral - Eu acho que eu trouxe estas coisas: a preferência pela palavra concreta em vez da palavra abstrata; em segundo lugar, a ausência de embalo, de melodia; em terceiro, a existência do mundo exterior.
Porque há muito poeta que você lê e tem a impressão de que o mundo exterior não existe para ele, só esxiste o mundo interior. Ao passo que na minha poesia você vê que o mundo exterior existe para mim, seja ele um quadro, uma paisagem, uma situação. Não sou nada confessional. Fui na contramão da sentimentalidade, do subjetivismo da poesia brasileira.
Folha - Até por isso, sua poesia é mais difícil, num primeiro contato, para o leitor comum.
João Cabral - Pois é. Por isso é que me espanta o interesse agora da Nova Aguilar em fazer uma edição tão cara de um escritor problemático.

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