São Paulo, domingo, 22 de maio de 1994
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Milagre chinês dá sinais de esgotamento

DAVE LINDORFF
DO "THE NATION", EM HONG KONG

À medida que se aproxima o dia 3 de junho, o prazo final para o presidente Clinton decidir se renova o status comercial de Nação Mais Favorecida (NMF) para a China, o mundo empresarial norte-americano aumenta a pressão para fazer a administração esquecer a contínua repressão exercida pela China contra os ativistas pró-democracia, os nacionalistas tibetanos e outros adversários do Estado unipartidário chinês.
O argumento do empresariado é simples: se os Estados Unidos não separarem os direitos humanos da política comercial, eles perderão bilhões de dólares em comércio e centenas de milhares de empregos.
Para Frank Martin, chefe da Câmara de Comércio Americana em Hong Kong, "se os EUA cancelarem o NMF, correm risco de se excluírem do mercado de crescimento mais rápido no mundo".
Clinton, que durante sua campanha presidencial criticou Bush por "mimar tiranos" em Pequim, expressou aberta simpatia pelos interesses do setor empresarial e parece estar disposto a conceder o NMF a Pequim.
Enquanto isso, porém, um número crescente de sinólogos diz que o "mercado de mais rápido crescimento do mundo" pode estar prestes a sofrer uma grande queda.
"As pessoas esqueceram que quando um país se abre e cresce muito rapidamente, ele passa por ciclos muitos fortes de crescimento e retração, e acho que a China vai sofrer um revés muito sério", diz Marc Faber, diretor de uma firma de assessoria em investimentos, sediada em Hong Kong.
Faber observa que a China passou de um superávit comercial líquido, em 1992, a um déficit comercial no ano passado –e que esse déficit está aumentando.
Durante os últimos dois anos o país sofreu uma evasão líquida de capitais, com investidores nacionais injetando dinheiro em Hong Kong e na América Latina.
A maioria das pessoas que vêem a China com pessimismo fazem questão de se manterem no anonimato, para não incorrer no desagrado de representantes chineses.
"O governo chinês admite que a inflação já é de 20% e que em algumas regiões urbanas chega a 40%", diz um economista muito importante de Hong Kong.
"Alguma coisa tem de ceder. Você tem uma moeda que está se desvalorizando internamente e a perspectiva de uma moeda que se desvaloriza também no exterior. Você tem a incapacidade das estatais de competir e de pagar seus funcionários. As perspectivas de perturbações sociais são enormes."
Um economista que fala abertamente é Thomas Chan, coordenador do Centro Empresarial Chinês na Politécnica de Hong Kong. Diz Chan, que tem acesso fácil às estatísticas do governo chinês (Pequim utiliza suas pesquisas): "Acho que a inflação chinesa está tão alta que uma aterrissagem dura para a economia tornou-se inevitável".
Chan argumenta que com o crescimento das vendas no varejo em menos de 5%, comparada com um crescimento industrial de 18%, "não existe base de apoio para este crescimento. Quando o crescimento começa a cair, as empresas terão que fechar ou elevar seus preços. A maioria vai elevar os preços, agravando a inflação".
Com isto, segundo Chan, os responsáveis pela política econômica chinesa se vêem num impasse. "Ou o governo imprime mais dinheiro ou arrocha o crédito. Com metade das estatais já tecnicamente falidas, qualquer redução no crédito levará a enormes falências de empresas".
Já faz vários anos que o governo vem dizendo que as estatais terão de manter-se de pé por conta própria. Mas como isto significaria a demissão de milhões de trabalhadores, ninguém quis dar o primeiro passo. E por um bom motivo: quando as empresas tentam demitir trabalhadores, frequentemente enfrentam violentas greves irregulares.
O governo oficialmente reporta 10 mil greves legais e várias centenas de "motins" em 1993. Isto num país em que as organizações trabalhistas independentes são ilegais e quem instiga um tumulto corre o risco de levar uma bala na cabeça.
Ultimamente a reação do governo tem sido de aceder às reivindicações dos trabalhadores, e Pequim vem imprimindo mais dinheiro para subsidiar empresas que enfrentam problemas.
Milhões de chineses já estão trabalhando, ou estão simplesmente inativos, recebendo meio salário mensal. Outros milhões vêm trabalhando há meses sem serem pagos.
Mais de 100 milhões de camponeses e trabalhadores agrícolas são hoje migrantes desempregados que vagueiam de cidade em cidade à procura de trabalho temporário.
Segundo uma estimativa o número total de desempregados na China talvez já supere os 200 milhões, mas esse é apenas um dos muitos problemas.
A ira que esses cidadãos desapropriados sentem é sintomática da crise provocada por vários anos de desenvolvimento frenético, mal planejado e cada vez mais superaquecido.
Em vista das várias crises que o país enfrenta, Chan prevê uma recessão "com características chinesas", que ele define como uma queda do índice de crescimento anual, dos 13% atuais para apenas 4%, começando este ano e durando até o início de 1997.
Os assessores econômicos de Clinton talvez considerassem um crescimento de 4% nos EUA como o paraíso, mas num país como a China, em que 900 milhões de pessoas ainda vivem em condições primitivas e onde a população aumenta rapidamente, um crescimento lento dessa ordem seria um desastre político.
Com a fé no comunismo e na revolução no índice mais baixo já visto (numa pesquisa recente, apenas 7% dos jovens disseram acreditar no comunismo e conversas particulares com quadros do governo mostram que até mesmo os membros do partido são leninistas relapsos e marxistas descrentes), a única base de legitimação e poder do regime tem sido seu êxito em expandir a economia e elevar os padrões de vida –pelo menos nas cidades.
Um crescimento tão lento quanto aquele previsto por Chan significaria índices ainda mais altos de desemprego, desabrigo e fome –e, inevitavelmente, distúrbios sociais (especialmente quando uma parcela considerável dos ganhos comerciais do governo e do capital estrangeiro investido contribuem para um maciço fortalecimento das reservas militares).
Este retrocesso econômico que se aproxima ameaçadoramente vem num momento em que o governo enfrenta uma crise política sobre a sucessão de sua liderança. Com a antecipada morte do patriarca enfraquecido Deng Xiaoping, que está com 89 anos, a liderança terá que vir de burocratas mais jovens, aos quais falta o prestígio associado aos combatentes da revolução de 1949.
As brigas por posições entre "conservadores" maoístas, "liberais" econômicos e reformistas políticos de todas as estirpes já estão se tornando complexas e viciadas.
Com os funcionários do governo central preocupados com intrigas palacianas, os líderes provinciais e até mesmo de condados estão pura e simplesmente ignorando as diretrizes de Pequim.
No ano passado, por exemplo, as autoridades de Guangdong, confrontadas com ordens de Pequim para limitar o consumo de petróleo, simplesmente assinaram contratos para a entrega de petróleo estrangeiro à Província.
Em lugar de deixar-se desmoralizar, admitindo que não tem meios de fazer implementar suas decisões, o governo central hoje habitualmente as "revê", transformando-as em medidas mais brandas quando confrontado com oposição regional.
Num estudo publicado nesta primavera pelo Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, sediado em Londres, Gerald Segal interpreta estes sinais como indícios de uma próxima descentralização econômica e política da China, talvez até mesmo de sua fragmentação.
É verdade que a opinião prevalecente mantém um visão mais otimista do futuro da China. "Acho que a economia vai crescer a um índice real de 10% este ano, que é uma desaceleração em relação aos 13,4% do ano passado", diz Jason Kwok, economista-chefe do Citibank em Hong Kong.
"No ano que vem acho que a desaceleração vai continuar, com 9% a 9,5%". Kwok diz que sua visão é mais otimista do que os céticos porque "eles não têm fé no governo chinês e eu tenho". Vale lembrar que o Citibank também teve muita fé na economia latino-americana nas décadas de 70 e 80.
Um funcionário consular econômico ocidental ecoa as idéias de Kwok: "Qualquer queda seria simplesmente parte do ciclo contínuo que vem sendo vivido desde que a política de reforma e abertura econômica começou, em 1979. A queda poderia durar dois a três anos, mas a tendência a longo prazo na China continua sendo de crescer cada vez mais".
Este observador admite que vê com inquietação o "déficit infraestrutural". Como diz, "a falta de usinas elétricas, ferrovias e rodovias pode abater a economia chinesa a mais longo prazo. Não se pode ter um crescimento contínuo de 13% quando as ferrovias já funcionam com 100% de sua capacidade".
O funcionário consular reconhece a incerteza política provocada pela corrupção e pelo desemprego, além da insatisfação na zona rural, onde o crescimento econômico e a melhoria nos padrões de vida não vêm acompanhando a China urbana.
"Parte do que se ouve na imprensa chinesa e internacional sobre corrupção e perturbações é propaganda. É a maneira do governo fazer saber ao povo que está ciente do problema. Mas em parte se deve ao fato de que eles realmente temem que as coisas estejam fugindo a seu controle."
Wei Jingsheng, o mais famoso dissidente chinês do Muro da Democracia, que acabou de cumprir 15 anos de encarceramento e voltou a ser preso em abril por acusações não especificadas, publicou recentemente um ensaio num jornal de Hong Kong aconselhando os investidores estrangeiros na China a não se deixarem ser vistos como estando apoiando o atual regime comunista, para não virem a incorrer na ira popular mais tarde.
Antes de ser preso esta última vez, Wei conclamou os EUA a manterem a pressão econômica sobre o governo chinês.
Os entendidos em política podem discutir se é ou não é do interesse do povo americano –e do interesse do povo chinês– ver a economia chinesa desabar.
Mas isso não tem sido o tema da discussão sobre a renovação do NMF, que em lugar disso vem focalizando os interesses econômicos imediatos dos EUA.
Seria um caso de justiça poética se a administração Clinton –traindo mais uma promessa feita durante sua campanha, em nome do "Realpolitik" e da promoção do comércio– cortasse o vínculo entre direitos humanos e NMF e lavasse suas mãos de responsabilidade pelos ativistas democráticos na China, apenas para descobrir que não há dinheiro para ser ganho.

Tradução de Clara Allain

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