São Paulo, quarta-feira, 25 de maio de 1994
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Gardel prenuncia o canto do cisne do galã

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Só por idolatria ou curiosidade mórbida alguém há de alugar o vídeo lançado recentemente, com Carlos Gardel no papel principal, "El Dia que me Quieras".
(Sempre pensei que era "El Dia en que me Quieras". O original elimina, entretanto, a preposição).
Naturalmente, o interesse e a qualidade do filme são dos mais escassos. Até dá para a gente se divertir, mas, se você pegou o filme num videoclube, é porque está querendo, antes de tudo, ver Gardel, o mito Gardel.
Carlos Gardel, mais que cantor e compositor de tangos, foi um mito nacional para a Argentina. É também uma espécie de mito sentimental latino-americano, o do galã não propriamente exótico, como Rodolfo Valentino, não tanto "latin lover" quanto sedutor no bom-mocismo. É símbolo de uma época em que América do Sul era mais bem-comportada do que hoje; em que a América do Sul era muito mais a Argentina do que o Brasil.
Essa imagem de bom-comportamento surge no filme antiquíssimo de Gardel à disposição dos videoclubes.
"El Dia que me Quieras" é uma coisa do tempo do onça. Divide-se em duas partes, igualmente babacas. A primeira narra a paixão de Carlos Gardel por uma bailarina. Carlos Gardel é filho de um riquíssimo especulador financeiro. Rompe com o pai e casa-se com Margarida. Mas ela morre.
A segunda parte narra o sucesso internacional de Gardel, 20 anos depois. A filha de Gardel quer casar-se com o filho de um rico homem de negócios. O homem de negócios opõe-se ao casamento. Súbito, revela-se que o pai de Gardel morrera. Uma fortuna imensa cabe ao cantor. Sua filha se casa com o filho do negocista.
Mais do que o enredo, o ambiente geral do filme nos deixa estupefatos. Tudo é velho, trata-se de um filme datadíssimo, de um "borocochismo" sem igual.
Que importa? Estamos vendo a atuação de Carlos Gardel, vivo e cantante, na tela.
Vestido impecavelmente, de casaca ou no máximo de paletó e gravata, usando palhetas ou chapéis de aba larga, sorrindo sempre, a brilhantina luzidia e brutal no cabelo, Carlos Gardel aparece no filme como um fantasma, como algo de irreal, branquíssimo e elegante.
Não vemos Carlos Gardel. É como se fosse o espectro de Gardel dotado de vida.
O cinema dos anos 30 tinha esse efeito de mitificar os artistas. De um lado, a imprecisão da fotografia, o exagero da maquiagem; de outro, o irrealismo das cenas –bailes num transatlântico, beijar de mãos, opulência dos vestidos–, tudo contribuía para a mitificação dos atores e atrizes.
Mesmo a fotografia em preto-e-branco ajudava muito. Greta Garbo a cores não seria Greta Garbo. Seria, talvez, uma outra Ingrid Bergman, uma outra Grace Kelly.
Assistimos a uma progressiva queda na qualidade mítica dos artistas de Hollywood. Quanto mais os filmes se fazem realistas e violentos, menos o caráter etéreo das atrizes e atores se valoriza. Já tivemos o tempo das "divas" (Marlene Dietrich, Jean Harlow, Gene Tierney mais recente, década de 40-50); depois, o das "estrelas" (Brigitte Bardot, Marilyn Monroe; Grace Kelly era algo entre "diva" e "estrela").
Mas o naturalismo tomou conta do cinema. Nada é tão inverossímil quanto um filme de Frank Capra, de Sternberg, de Lubitsch, ou este com Carlos Gardel. Demi Moore, Julia Roberts, Sharon Stone podem ser belíssimas –não são "inatingíveis" como as divas de antigamente. O ponto de transformação foi, sem dúvida, Marilyn Monroe: o último mito do cinema, em papéis que a faziam acessível, ingênua, carinhosa e próxima.
Quanto ao galã, as coisas diferem. Arrebatado e misterioso, como Rodolfo Valentino ou Orson Welles em "Jane Eyre"; heróico, esportivo, de Errol Flynn a Michael Douglas –tudo bem. Mas o galã por execelência, o tipo fino, de bigodinho, hábil nos salões, esse desapareceu, se é que chegou a existir.
David Niven, Laurence Olivier, que faziam o tipo "educado", eram galantes demais para ser galãs. Pressupõe-se alguma dose de violência (Rhett Butler estapeando Scarlett O'Hara), de feiúra (Humphrey Bogart), de "sem-jeitice" (Cary Grant, James Stewart) para o pleno desempenho do papel. Depois tratou-se de fazer do galã uma coisa meio tonta e desprezível (Mickey Rourke, Richard Gere).
Carlos Gardel, neste filme, é o galã dos galãs, isto é, o galã que de tão delicado e fino teria de pagar com infelicidade o preço de sua única conquista. É galã com todo mundo –até com os inimigos.
Sorri sem parar. Sua profissão, como cantor, é a de ser agradável.
Isso contribui para o aspecto espectral, vago, fantasmático do filme. Sempre educado, sempre conciliador, sempre amigável, e parecendo sorrir mesmo quando aparecem desgraças, Gardel surge como exemplo de cavalheirismo e de boas maneiras. Seria inimaginável um soco de Carlos Gardel contra os adversários.
Constitui-se assim um mito cinematográfico e nacional. A "argentinidade" tão enaltecida por Jorge Luís Borges, dos valentões de subúrbio, cede aqui a um ideal de civilização, vestido de sobrecasaca e colarinho duro.
Vale a pena ver o filme, pelo que revela de contraste entre a sociedade argentina e a sociedade brasileira.
País mais europeizado, desfrutando de razoável estabilidade demográfica, e de classe média urbana poderosa desde o início do século, a Argentina continua cultuando o espectro civilizado de Gardel.
Mais caótico, antipassadista, "moderno", "americano", o Brasil vê com estranheza, ou com espírito de ridículo, os mitos que produziu. Tanto que procura mitos atuais, como Ayrton Senna.
A Argentina de certo modo resolveu-se, decidiu-se como país muito antes do Brasil. Cultua seus tangos.
Um longo documentário sobre o tango foi produzido pelo cineasta argentino Mauricio Beru, à espera de divulgação merecida nas TVs educativas brasileiras. Acima de qualquer coisa, mostra o aspecto de culto que o tango tem, como formador de identidade nacional. Gardel é uma presença.
No Brasil, carecemos de figuras assim. Por isso mesmo, o filme "El Dia que me Quieras" surge como aberração saudosista, como estranheza, como arcaísmo, nos videoclubes. Mas é interessante deixar-se levar por este produto do passado. Passado que, para nós, brasileiros, tende a ser mais evasivo, mas, ridículo.

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