São Paulo, domingo, 29 de maio de 1994
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O declínio do império latino-americano

JORGE CASTAÑEDA

Erramos: 31/05/94

Este artigo foi publicado com dois erros de tradução. Onde está escrito "taxa de interesse", deve-se ler, "taxa de juros".
A palavra espanhola "ahorro", que significa poupança, foi traduzida erroneamente por arrocho. A tradução correta da frase é: "Trágica involução para uma região em desenvolvimento, que requereu desde o século passado uma forte dose de financiamento externo para suprir a poupança raquítica".
O declínio do império latino-americano
Um dos acontecimentos mais inesperados na evolução recente das economias da América Latina foi a mudança de tendência em matéria de fluxo de capital.
Durante os anos 80, devido ao peso da dívida externa, a alta nas taxas reais de interesse em outras partes do mundo e a reticência dos bancos em voltar a emprestar a países superendividados ou quebrados, o continente voltou a ser um nítido exportador de capitais.
Trágica involução para uma região em desenvolvimento, que requereu desde o século passado, uma forte dose de financiamento externo para suprir o arrocho local raquítico.
O estalido da crise financeira mexicana em agosto de 1982 pôs fim a uma época de disponibilidade -ainda que não abundante– de recursos externos para a América Latina. Por quase dez anos, a região ficaria desprovida de apoio estrangeiro para seu desenvolvimento.
A partir de 1991, essa tendência se inverteu. Ao invés de enviar capitais para o mundo, a América Latina passou novamente a ser um nítido importador de financiamento, por meio de torrenciais fluxos de inversão estrangeira, principalmente de carteira ou especulativa, mas também em parte direta.
México, Venezuela, Argentina, Brasil, Chile e Peru viram-se submergidos por uma maré de recursos dirigidos às suas respectivas bolsas de valores ou na compra de empresas privadas.
Linhas aéreas, minas, siderúrgicas, empresas telefônicas, de energia elétrica: boa parte do setor estatal foi posto a remate.
A partir de então, os indigentes Estados latino-americanos obtiveram consideráveis ingressos de capitais, para combater, supostamente, a pobreza, pagar dívidas ou, simplesmente, para enriquecer e desopilar as ambições de um pressuposto ardente sonhador. Muito se disse sobre os motivos reais desta mudança de perspectivas.
A princípio a maioria dos analistas fincou pé na relação entre fluxos de capital e estabilidade macroeconômica: o dinheiro fluía para os países cujas economias haviam posto em prática as reformas "necessárias" e obtido os equilíbrios indispensáveis.
Liberalização comercial, desregulamentação e privatizações, controle da inflação, redução de impostos sobre gastos para eliminar déficits fiscais: estes eram, se supunha, os requisitos para atrair capitais.
Em um segundo momento, os estudiosos enxergaram outros estímulos: os elevadíssimos rendimentos em dólares obtidos nos chamados mercados emergentes, quando as taxas de interesse nos EUA e Europa estavam nos níveis mais baixos em décadas.
Uma certa estabilidade cambial na moeda local, unida a fortes ambições, tornavam as bolsas de valores do México, de Buenos Aires, de Caracas ou de São Paulo atraentes para capitais cada vez mais móveis.
Daí surgiu a primeira contradição: fluíam capitais em quantidades iguais para países como o Brasil, que havia levado a cabo o ajuste estrutural recomendado, e a Argentina, em vias de converter-se na menina dos olhos das finanças internacionais.
Chegava dinheiro para a Venezuela, com sérios sinais de instabilidade política e social desde o chamado "Caracazo de Febrero" (1989), e também para o Chile, paradigma de estabilidade política e macroeconômica.
A conjuntura de hoje se parece com a de 1982, quando razões diversas convergiram para interromper a torrente de capitais para a América Latina -via créditos no lugar de inversão especulativa.
Três fatores contribuíram para por fim à bonança latino-americana: a alta das taxas de interesse nos Estados Unidos, a crise mexicana e a tendência de baixa dos interesses em valores de renda fixa na América Latina para estimular economias em letargia.
Dos três, a alta nas taxas norte-americanas foi o fator decisivo, da mesma maneira que o anúncio de uma nova política monetária por Paul Volcker, o então presidente da Reserva Federal dos EUA, em maio de 1980, induziu a um aumento vertiginoso das taxas de interesses reais que conduziu à crise da dívida.
A partir de fevereiro deste ano, a dita convergência de fatores desatou uma tendência contrária da que havia prevalecido desde 1990.
Começaram a perder valor as bolsas de valores, caíram os bônus latino-americanos e a fascinação com os mercados emergentes desvaneceu-se.
Assim como em 1982, a ruína mexicana repercutiu negativa e injustamente em outros países. Não é de se estranhar: a bolsa de valores mexicana representa a metade da capitalização de todas as bolsas latino-americanas. E as turbulências por que passam a economia e o arcaico sistema político do país são muito preocupantes.
Entre seu ponto mais alto deste ano e seu nível no princípio de maio, em dólares, a bolsa mexicana caiu 24%, a de Buenos Aires idem, a brasileira 40% e a da Venezuela mais de 30%.
Se se mede a mais alta ascensão mediante a mais baixa queda ao longo do último ano, a variação é menor, mas também considerável: 17% no México, 5% na Argentina, surpreendente nula para o Brasil e quase 20% para Venezuela.
Se se analisa o índice Embi (Emerging Markets Bond Index) de JP Morgan, que mede a evolução do valor dos títulos da dívida latino-americana, a queda é estrondosa.
O índice passa de 100 em vésperas da revolta de Chiapas e da quebra do Banco Latino de Caracas e Miami, a quase 75 no início de abril, para estabilizar-se -por hora- abaixo de 85 pontos.
É uma perda de quase 20% em quatro meses: um péssimo negócio para os que sonharam com um novo Eldorado.
No México, calcula-se a hemorragia de divisas entre US$ 9 bilhões e US$ 12 bilhões. Soma contornável dada a grandeza das reservas e o apoio de que goza o governo do presidente Salinas de Gortari, mas alarmante em suas dimensões absolutas.
No caso da Venezuela, especula-se que a perda de dólares alcança mais de US$ 2,5 bilhões desde janeiro.
O problema maior se fundamenta, no entanto, nas consequências futuras desta tendência.
Com exceção do Brasil, todos os países da América Latina (inclusive o Chile) padecem de crescentes déficits em suas balanças comerciais.
Sem o fluxo de capital externo, qualquer crescimento (medíocre ou nulo no caso do México, Bolívia, Venezuela; maior no caso da Argentina, Peru e Chile) tornaria-se insustentável.
O México requer mais de US$ 2 bilhões por mês simplesmente para manter o fluxo da economia. A lei de conversibilidade do peso argentino, razão da popularidade do presidente Carlos Menem, depende também da torrente de dólares procedentes do exterior.
É preocupante a evolução recente. O atual esquema econômico latino-americano tem como condição necessária -ainda que não suficiente- de seu funcionamento, o abundante fluxo de recursos externos, quiçá maior ao exigido durante o processo de substituição de importações do passado.
Tudo parecia indicar que tal condição havia sido cumprida, com a crença nos êxitos da estabilização e a venda de ativos. Hoje é necessário matizar esta apreciação ou mesmo retificá-la.
É uma das consequências da ira dos indígenas de Chiapas e do declínio do império americano, como já disse um grande filme canadense há anos.

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