São Paulo, domingo, 29 de maio de 1994
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O Mobral nasceu para negar o meu método e meu discurso

MARILENE FELINTO; MÔNICA RODRIGUES COSTA

No Sesi, tive meu reencontro com a classe trabalhadora, através do ensino, que reavivou um sem-número de conhecimentos e intuições de minha adolescência ainda, e que pude aplicar nas escolas que então fundamos.
Uma das coisas que tentamos realizar foi, por exemplo, o aprofundamento das relações entre família e escola. Desenvolvi toda uma metodologia dialógica que era também um reencontro com a minha vida pessoal, familiar.
Foi por ocasião dos meus seminários no curso de formação permanente para professoras que um dia me perguntei: por que não desenvolver um certo processo, com algumas metodologias, com alguns materiais, que façam mais fácil ao adulto aprender a ler e a escrever?
Folha - O sr. pensou desde o início no adulto?
Freire - Pensei realmente no adulto, não na criança. Essa preocupação na época era também política e não só educativa.
A prática educativa é uma prática política, que coloca ao educador uma ruptura, uma opção, ou seja, você educa com vistas a um certo ideal. É o sonho de sociedade que você tem.
Naquela época, quando eu me fiz essas perguntas, estava, de um lado, assombrado, e do outro, zangado, porque eu acho que o direito de ter raiva é fundamental na vida.
E eu tinha a mesma raiva de quando era menino e descobri que o mundo tinha qualquer coisa de errado e precisava ser corrigido.
Nessa altura descobri que o analfabetismo era uma castração dos homens e das mulheres. Uma proibição que a sociedade organizada impunha às classes populares.
Folha - Seu trabalho no Sesi foi tão importante quanto o trabalho no Movimento de Cultura Popular (MCP)?
Freire - O MCP teve vida curta, ele nasce em 1961 e é abolido em 1964, com o golpe militar. Mas ele teve uma presença marcante no Brasil. Foi nessa ocasião que nasceu a minha grande indagação. O trabalho anterior que fiz no Sesi desde 1947 serviu de fundamentação para a resposta que dei à minha pergunta.
Folha - A resposta foi o "método Paulo Freire"?
Freire - Exatamente, a resposta foi o que se veio chamar de método Paulo Freire. Ele foi concebido espaço entre 1961 e 1963, quando foi aplicado em Angicos (RN). Mas nada nasce quando a gente pensa que nasceu. As coisas vêm de antes, dormindo, não é? Desde 1947 eu trabalhava sem saber naquilo que veio depois.
Folha - Como foi implantada em Angicos essa experiência?
Freire - Olha, a coisa se deu da seguinte forma, eu recebi um chamado do secretário da Educação do Rio Grande do Norte, Calazans Fernandes, para ver até que ponto eu daria uma colaboração a eles. Fui muito criticado por alguns elementos da esquerda, que me pensaram pervertido já pela Aliança para o Progresso.
Folha - Quem criticou o sr. nessa época?
Freire - Eu preferia não chegar a nomes. Mas foram algumas pessoas sérias e, na minha opinião, equivocadas. Minha tese era a seguinte: o que importava a mim para ajudar nosso povo era saber se, primeiro, eu teria autonomia político-pedagógica.
Segundo, se eu poderia indicar a pessoa responsável pela experiência no Rio Grande do Norte. Daí para a frente, o dinheiro poderia vir de onde viesse.
Terceiro, eu não receberia dinheiro, não recebi. Eu tinha meu ordenado da universidade. Mas alguns amigos, gente séria, gente boa, achavam que isso era dar uma colher de chá muito grande ao imperialismo americano.
Eu dizia que não, eu só estaria dando colher de chá ao imperialismo americano se eles interferissem no conteúdo do trabalho.
Folha - Nos anos 60 como era a sua participação na política?
Freire - De forma indireta. Eu hoje te digo que era de forma diretíssima, entende? Mas não através de uma sigla partidária. Sobre isso eu tenho, inclusive, uma história curiosa para contar.
Quando eu estava no exílio, na Inglaterra, em 1969, achei um livro chamado "A Aliança que Perdeu seu Caminho" ("The Aliance which Lost its Way").
Era de autoria de dois jornalistas do "The New York Times", que tinham trabalhado no Recife e em Natal. Lá pelas tantas, eles estudavam o programa do Paulo Freire em Natal, no Nordeste, e diziam: "Para nós, Paulo Freire foi eminentemente subversivo, ou melhor, revolucionário, na medida em que seu programa estimulava o pensamento crítico, trabalhava contra as tradições autoritárias dos donos do mundo, dos donos da vida. E quando –diziam eles– a direção geral da Aliança para o Progresso descobriu essa conotação política do programa Paulo Freire, suspendeu sua ajuda três meses antes do golpe a Goulart".
Eu acho que essa afirmação nesse livro me absolve historicamente, prova que eu estava certo.
Folha - Esse programa se aplicaria hoje?
Freire - As minhas perguntas em torno do chamado método de natureza política e ideológica continuam de pé. Hoje, eu adequaria algumas de minhas propostas, de acordo com os estudos atuais da sociolinguística, da psicolinguística. Não há dúvida de que fundando-me em Piaget, Vygotsky, e nos achados que a pesquisadora argentina Emília Ferrero vem apresentando no campo da alfabetização, da produção da linguagem.
Vygotsky, inclusive, me influenciou antes que eu o lesse, nós dizemos coisas parecidas sobre o procedimento da prática da alfabetização. Do ponto de vista da compreensão do que é ler e escrever, não mudo coisa nenhuma do que escrevi.
Acho que com isso respondo a sua pergunta sobre quando o método nasceu. Minha preocupação era com a crítica da prática educativa.
A tese acadêmica que escrevi em 1959, "Educação e Atualidade Brasileira", já era um anúncio da "Pedagogia do Oprimido", de 1968. Era o núcleo central de todo esse pensamento que eu desenvolvi também no livro "Educação como Prática da Liberdade".
Folha - O Golpe de 64 de algum modo estigmatizou seu método como subversivo, de esquerda radical.
Freire - Tentaram, mas não vingou, na medida em que os estudiosos descobriram que minha proposta era um pouco mais do que a pura alfabetização, ainda que a alfabetização seja de absoluta importância.
O professor Ernani Fiori, que escreveu o prefácio da "Pedagogia do Oprimido", diz que a alfabetização é uma introdução à antropologia, à compreensão do homem e da mulher.
Os intelectuais perceberam que afinal eu estava preocupado com uma compreensão crítica e criadora da educação, com a filosofia da educação.
Folha - Seu método é mais importante por ter fundado uma filosofia da educação no Brasil ou pela aplicação concreta que teve?
Freire - Todas essas coisas são válidas. Um fato curioso quanto à aplicação concreta no Brasil é, por exemplo, o Mobral nascer para negar meu método, para silenciar meu discurso, mas ter trazido para dentro de seu quadro de professores jovens que tinham trabalhado com o método Paulo Freire.
Folha - Por que o método Paulo Freire não conseguiu erradicar o analfabetismo no Brasil?
Freire - Tu sabes que, em tese, o analfabetismo poderia ter sido erradicado com ou sem Paulo Freire. O que faltou, centralmente, foi decisão política. A sociedade brasileira é profundamente autoritária e elitista. Para a classe dominante reconhecer os direitos fundamentais das classes populares não é fácil.
Nos anos 60 fui considerado um inimigo de Deus e da pátria, um bandido terrível. Pois bem, hoje eu já não seria mais considerado inimigo de Deus. Você veja o que é a história.
Hoje diriam apenas que sou um saudosista das esquerdas. O discurso da classe dominante mudou, mas ela continua não concordando, de jeito nenhum, que as massas populares se tornem lúcidas.
Folha - Como foi o episódio de sua prisão, em 1964?
Freire - Quando o golpe se deu, eu estava em Brasília. Conseguimos mandar minha mãe, que estava comigo, e meus cinco filhos, as três meninas e os dois meninos, de volta para Recife.
Ficamos, Elza e eu, na casa de um grande amigo, Luiz Bronzeado, que era deputado federal da situação na época, essas coisas que só no Brasil existem, não é?
Ele era da situação... Ele dizia "Paulo, discordo de tuas idéias, mas tu és um homem de bem, um homem como eu, e eu gosto muito de você, sou teu amigo", e nos guardou a mim e a Elza durante os primeiros dias.
Eu sabia que seria preso. O que eu queria evitar era a prisão no Nordeste. Onde tem cana-de-açúcar a coisa é muito bruta, não é? Elza foi para Recife antes de mim, e não foi presa.
Depois de um mês em Brasília, voltei a Recife, me apresentei à polícia e eles marcaram para eu ser entrevistado, quando então o Exército se antecipou e me prendeu.
Foram me buscar um dia em casa, me levaram para o quartel do Exército, em Olinda, e eu fiquei preso durante 75 dias numa cela de 1,70 m por 60 cm e de paredes ásperas. Respondi interrogatório, mas não fui torturado. Fui preso no começo da experiência do golpe, quando não haviam ainda "democratizado" a violência, a tortura.
Depois disso me mandaram para o Rio de Janeiro, para eu continuar a ser inquirido. No Rio, um amigo me aconselhou a me esconder e ir embora do Brasil. Então pedi asilo na embaixada da Bolívia, onde passei um mês, até o governo brasileiro me dar o salvo-conduto para deixar o país.
Depois da Bolívia, fui para o Chile, onde fiquei até 1969 e então saí para os Estados Unidos. Foi muito importante viver quase um ano nos Estados Unidos, porque eu tive a possibilidade de ver de perto o bicho na toca.
Folha - O sr. é um cientista. É também religioso?
Freire - Sou muito mais um homem de fé. Mas sequer tenho mérito por isso, porque não faço força para acreditar, entende?
Quando eu era moço, li num livro do filósofo espanhol Unamuno a seguinte frase: "Eu estou em minha fé." Acho que comigo acontece isso também.
Experimento a fé, como quem se experimenta nesta cadeira agora. Eu me sinto instalado na fé. O importante é que jamais consegui conceber que minha fé pudesse servir contra os interesses do povo. Jamais pude admitir que pudesse conciliar a fé com uma posição reacionária.
Folha - O fim do comunismo é definitivo?
Freire - O fim do comunismo no Leste europeu representa uma queda necessária, na minha opinião. Mas é a queda não do socialismo, do sonho, da utopia socialista. É a queda da moldura autoritária, reacionária, discricionária, stalinista, dentro da qual se pôs o socialismo.
Entre o socialismo e o capitalismo, a diferença fundamental é que o capitalismo tem uma moldura democrático-burguesa. O que presta no capitalismo, no meu entender, não é ele. Para mim, ele é uma malvadez em si mesma. Se se pensa na excelência do capitalismo no Brasil, eu me pergunto: que excelência é esta que produz 33 milhões de famintos?
O que o capitalismo tem de bom é apenas a moldura democrática. Um dos maiores erros históricos das esquerdas que se fanatizaram foi antagonizar socialismo e democracia.
Por isso, a queda do muro de Berlim é uma espécie de hino à liberdade, muito mais do que um retorno ao capitalismo. A utopia socialista talvez nunca tenha tido uma oportunidade tão bacana quanto hoje, historicamente, para crescer.
Porque, de agora em diante, o capitalismo já não pode dizer que a culpa de seus males é do comunismo. Ele tem que assumir a sua responsabilidade.
Folha - Como foi sua experiência de secretário da Educação da prefeitura de São Paulo na gestão de Luiza Erundina? Dizem que o sr. não conseguiu imprimir sua marca pessoal naquela administração.
Freire - Qual nada. Eu diria até que a gente não tem que imprimir marca pessoal coisíssima nenhuma. As marcas pessoais são sociais. Mas há sempre uma dimensão pessoal a ficar, e esta ficou. Nossa gestão fez um trabalho de colegiado, e isso é bem Paulo Freire. Fui possivelmente o secretário que menos poder teve, porque descentralizei totalmente a administração.

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