São Paulo, domingo, 29 de maio de 1994
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"É preciso dizer que tudo isso aconteceu"

PAULO FREIRE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não importa qual a razão por quem um dia amanhecemos em terra estranha. O fato de experimentá-lo trabalha, com o tempo, para que novas situações nos re-ponham no Mundo. O mesmo vai se dando com quem ficou na terra original. A história não iria parar para elas e eles, esperando que o tempo de nossa ausência passasse e afinal pudéssemos voltar e dizer-lhes no primeiro encontro que não seria um re-encontro, "como ia te dizendo". (...)
Nos "bastidores" destas necessárias "re-posições" no mundo, no mundo dos que mudaram de mundo e no original dos que ficaram porque puderam ou tornaram, com valor, possível ficar, há toda a dramaticidade, de que tanto tenho falado, do desenraizamento. Há toda a necessidade de aprender a grande lição histórico-cultural e política desocupando-nos no contexto de empréstimo, tornar o nosso, que não abandonamos, mas de que estamos longe, a nossa pré-ocupação.
Quando as razões que nos empurram do nosso para outro contexto são de natureza ostensivamente política, a possível correspondência entre os que partem e os que ficam corre riscos indiscutíveis de criar problemas para ambas as partes. Um destes é o medo, bastante concreto, da perseguição tanto ao exilado e a sua família, quanto ao que ficou no país. Daria para escrever longas páginas, num estilo de "acredite se quiser", sobre perseguições sofridas por exilados e suas famílias e por brasileiros e brasileiras que aqui ficaram e a quem amigo menos cauteloso escreveu cartas insensatas ou demasiado bem escritas cuja compreensão não pode ser corretamente produzida pelos mestres da censura.
Nunca esqueço, por exemplo, da possibilidade que tivemos, certa tarde em Santiago, oferecida por um radioamador, sociólogo, que trabalhava num órgão das Nações Unidas, de conversar, através de outro radioamador do Recife, com familiares nossos. Fomos absolutamente cautelosos. Palavras medidas. Conversa puramente afetiva.
Em seguida, o mesmo amigo se ofereceu para possibilitar ao político paulista, Plínio Sampaio, exilado como eu, que falasse com sua família em São Paulo por meio de outro radioamador, por coincidência, amigo de Plínio. Eu estava ao lado de Plínio e me lembro, como se fosse agora, de que, em certo momento, ele diz a seu amigo das saudades que tinha das serenatas que faziam ou de que participavam juntos e acrescentou estar certo de que em breve –essas certezas de saudosos– estariam juntos cantando e ouvindo cantar.
Na escuta, aqui, estava um desses gênios dos "serviços de inteligência". Imagino a alegria com que comunicou a se não menos genial chefe que Plínio Sampaio se preparava para vir montar uma guerrilha em São Paulo.
Seria a primeira guerrilha de seresteiros a que certamente não faltariam Sílvio Caldas e Nelson Gonçalves. Resultado: o amigo de Plínio teve sua carta de concessão para funcionamento de sua estação de radioamador cancelada e supresso, portanto, seu entretenimento de fins-de-semana. Não só seu entretenimento, mas, sobretudo, sua possibilidade de ajudar e de servir a outros que fundamenta o sonho de radioamadores, além de ter ficado, naquela tarde em diante, sob a mira irracional dos serviços da repressão.
Por tudo isso fui sempre muito parcimonioso com relação ao horizonte de amigos ou amigas a quem escrevia, no Brasil, nos tempos de exílio, bem como bastante discreto em face de sobre que escrevia. Temia criar dificuldades a amigos por causa de uma frase mal pensada.
Além de minha mãe, que morreu antes de que eu pudesse revê-la e a quem escrevia quase semanalmente nem que fosse apenas um cartão, de irmãos e de minha irmã, de uma prima, meus cunhados e de duas sobrinhas, uma delas Cristina, havia uma dúzia, no máximo, de amigos e amigas, a quem, de vez em quando, escrevia cartas.
Estou convencido, inclusive, de que nós, homens e mulheres, que vivemos a trágica negação de nossa liberdade, desde o direito a nosso passaporte ao mais legítimo direito de voltar para casa, passando pela singela prerrogativa de escrever despreocupadamente cartas a amigos, devíamos constantemente dizer aos jovens de hoje, muitos dos quais nem sequer haviam chegado ainda ao mundo, que tudo isso é verdade. Que tudo isso e muito, muitíssimo mais do que isso, aconteceu.
A inibição exercida sobre nós para limitar o nosso direito de escrever cartas e as fantasias diabólicas e estúpidas que eram alimentadas pelos órgãos da repressão por causa deste ou daquele substantivo, desta exclamação ou daquela interrogação ou por causa desses inocentes e quase sempre sem gosto três pontinhos, as chamadas reticências, tudo isso era apenas um segundo no tempo imenso em que o arbítrio militar se movia encarcerando, torturando até a morte, dando sumiço nas gentes, ensanguentando corpos que voltavam para suas celas, depois das célebres "sessões da verdade", semivivos, apenas. Corpos trôpegos, cheios, porém, de dignidade, macabramente desfilando, nus e tintos, ao longo do corredor em cujas celas seus companheiros e/ou companheiras esperavam que chegasse a sua vez. É preciso dizer, redizer, mil vezes dizer que tudo isso aconteceu.

Extraído de "Cartas a Cristina", de Paulo Freire, a ser lançado pela Paz e Terra

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