São Paulo, domingo, 29 de maio de 1994
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A verdade sobre os povos árabes

EDWARD SAID
DO "THE INDEPENDENT"

Existe algo de profundamente tranquilizador e até mesmo redentor neste excelente livro, lançado justamente quando os Estados Unidos estão efetivamente tentando destruir o Iraque como nação árabe moderna. Seu autor, Albert Hourani, está aposentado e vive em Londres, depois de passar sua vida lecionando em Oxford.
Nascido em Manchester e educado como inglês, Hourani é filho de prósperos libaneses protestantes, que foram para a Inglaterra no início do século, mas nunca perderam contato com o Oriente Médio.
Não seria inexato dizer que Hourani é o maior historiador do Oriente moderno da atualidade, um estudioso cujos livros anteriores sobre a Síria e o Líbano e "Arabic Thought in The Liberal Age" (Pensamento árabe na era liberal, uma história intelectual de grande erudição e visão) são clássicos, lidos tanto por eruditos quanto por leitores gerais por seu alcance e pela atenção meticulosa e refinada que concedem à composição da vida árabe.
Numa coletânea de ensaios publicados nos últimos anos, a empatia e o aguçado senso histórico de Hourani apresentaram a leitores ocidentais e árabes uma complexa estrutura de conexões entre árabes e europeus, árabes e outros árabes, governantes e governados, pensadores e sociedades.
Agora, num sumário magistral toda a história dos povos árabes é apresentada por Hourani. Não existe outro livro igual a este, exceto os estudos grandiosos redigidos uma geração atrás por outro estudioso libanês, Philip Hitti.
Hourani tem uma vantagem em relação a Hitti, tanto em termos da quantidade maior de estudos contemporâneos aos quais recorre e em termos de seus métodos, relativamente atualizados.
As linhas mestras de Hourani, entretanto, são inteiramente clássicas, tiradas da vida e das obras de Ibn Khaldun, o extraordinário historiador e filósofo árabe do século 14. Falando em termos simples, o argumento de Ibn Khaldun no "Muqaddimah" é que existem variedade e unidade, estabilidade e flutuação e mudanças de poder que vêm organizando o mundo árabe há cerca de um milênio e meio. Todos estes são específicos da coesão da sociedade árabe, cujas leis internas Hourani resume num belo trecho de seu livro.
"Um mundo em que uma família do sul da Arábia podia mudar-se para a Espanha, e depois de seis séculos retornar para mais perto de seu local de origem e ainda encontrar-se num ambiente familiar, tinha uma unidade que transcendia as divisões do tempo e espaço; a língua árabe podia abrir a porta a cargos e influência no mundo inteiro; um corpus de conhecimento transmitido no decorrer dos séculos por uma cadeia conhecida de professores, preservava uma comunidade moral mesmo quando os governantes mudavam; locais de peregrinação, como Meca e Jerusalém, que eram polos imutáveis do mundo humano mesmo que o poder se transferisse de uma cidade a outra; e a crença num Deus que criava e sustentava o mundo podia conferir significado aos golpes do destino".
Assim, a história dos povos árabes começa com a Antiguidade, à medida que um "ethos" árabe emerge, baseado nos esplendores crescentes de uma língua rica, uma vida geralmente pastoril entremeada de viagens, a tradição herdada de Roma, Grécia, do judaísmo e do cristianismo primitivo.
A seguir, o estilo naturalmente sintetizador de Hourani mostra como o Islã, energizado e articulado na Arábia do século 7º pelo profeta Maomé, produziu uma nova e espantosa civilização: em questão de décadas, ela se estendera até o Marrocos e a Espanha.
Ao descrever os diversos povos, dinastias e estilos incluidos neste vasto empreendimento, Hourani atinge um nível de generalização tranquila que jamais é redutiva.
Mas ele raramente se mostra apaixonado ou dramático, deixando frequentemente no leitor o desejo de vislumbrar um personagem ou uma narrativa que de algum modo pudesse transmitir a sensação mais imediata da vida vivida.
Esta falta se faz sentir especialmente durante a descrição que Hourani faz da civilização Abbasid (749-1258), cuja sede em Bagdá produziu um dos maiores florescimentos do empreendimento árabe.
Tendo em vista o atual ataque americano a Bagdá e o fato de que a cidade foi destruída pela última vez em 1258, pelos mongóis, nossa sensação de tristeza e ultraje é apenas parcialmente atenuada pelas páginas calmas de Hourani.
Ninguém mais do que Hourani respeita a diversidade das sociedades árabes. O status de judeus e cristãos, o papel das mulheres e, sobretudo, o sutil intercâmbio entre doutrina prática e atualidade social islâmicos, desde a Andaluzia até a Síria e a Arábia, são tratados com precisão e elegância.
O que emerge da primeira metade de sua história é um "Weltanschaung" árabe surpreendentemente tolerante, dominado não por fanáticos mas por sábios corteses e sensíveis, magistrados sofisticados, hábeis cortesãos.
Mas a história apresentada por Hourani é mundana e secular. Sempre alerta às modulações da sorte, ele localiza a geografia do poder com grande perspicácia.
Uma característica dos governantes, desde os Umayyads do século 8º até os Otomanos, por exemplo, é a retirada física do soberano de sua cidade principal para um palácio nas redondezas.
Outra característica observada por Hourani é o contraponto entre a África do Norte, por um lado, e do outro as terras islâmicas centrais (Síria, Iraque, Egito e Arábia), com suas relações às vezes tensas, às vezes cordiais, com nações islâmicas mas não árabes como o Irã, a Turquia e a Índia.
Na segunda metade de sua história, Hourani mostra como a ascendência da Europa começou a lançar uma sombra sobre a antiga grandeza dos árabes. Não que ele indique o Islã como sendo o problema – pelo contrário. As páginas de Hourani sobre a integração da fé islâmica com a cultura árabe são uma obra-prima de exposição coerente e nuançada, em boa parte porque ele jamais confunde o que um texto afirma com a realidade. Hourani tampouco tolera a propaganda malfeita que reduz toda a vida árabe ao chamado contexto islâmico.
Sempre existem conflitos de interpretação - como entre as escolas de pensamento Hanbali, Shafii, e Maliki–, controvérsias em "ijtihad" (julgamento independente em assuntos relativos à fé); em relação ao papel dos califas, imãs e "gadis", aquelas autoridades na lei "shariah": entre a "sunnah" (ortodoxia) e o xiismo.
Hourani desmascara a estúpida caricatura do Islã como bloco monolítico que nunca envelhece, oferecendo-nos uma tapeçaria variadíssima de configurações religiosas e sociológicas.
No entanto, enquanto a vida continuava e o Ocidente penetrava cada vez mais no universo árabe, o equilíbrio do poder mundial deslocou-se cada vez mais, para desvantagem do Oriente e do Sul.
A economia dos árabes parece haver desempenhado o papel central nas transformações notadas por Hourani, especialmente a incapacidade dessa economia de manter-se a par da maior habilidade empresarial e militar do Ocidente.
Isto deu lugar a sucessivas ondas de reformas, desde Muhamad Abdul e Jamal Al-Din Al-Afghani até Gamal Abdel Nasser e a luta pela Palestina, e mais recentemente ao surgimento de vários tipos de fundamentalismo islâmico.
O que Hourani faz especialmente bem, na minha opinião, é contar a história na maioria de seus aspectos sem alarmismo ou sensacionalismo. Assim o leitor árabe ou ocidental tem a oportunidade de enxergar as circunstâncias terrivelmente exacerbadas de hoje num contexto mais calmo, mais razoavelmente matizado, no qual as paixões do momento dão inevitavelmente lugar a um padrão encorajador de reciprocidade, através da qual árabes e ocidentais possam se compreender e possam compreender uns aos outros.
É difícil superestimar a grande importância deste livro para nossa época. Nele temos, finalmente uma história facilmente legível dos árabes, como muitos deles, acredito, gostariam que fosse conhecida pelos não-árabes. Embora boa parte dela seja resumida ou sugerida apenas, isso (dada a bibliografia de Hourani) constitui pelo menos um incentivo para maiores leituras.
O mais importante é que não existe qualquer indício no livro do que se convencionou chamar de orientalismo, aquela escola acadêmica inepta e repleta de jargão para a qual ficções ideológicas como "a ira islâmica" (ou árabe) e "a mente árabe" são corriqueiras.
Na verdade, Horani dissolve a maior parte da construção orientalista, com suas polêmicas defesas, sua hostilidade aberta em relação aos árabes e, quando ela é promovida por árabes contemporâneos, sua grotesca autodilaceração.
Não que ele seja sempre permissivo ou triunfal. Controla o melhor da erudição ocidental e frequentemente permite que os árabes, seus poetas, historiadores, sábios e pessoas comuns falem ao lado de seus conhecimentos, em vez de contra eles. Para ele a evidência histórica é um testemunho, e não um sintoma da vida árabe.
Lamento que a bibliografia de Hourani sobre a Palestina seja tão repleta de uma preponderância de fontes israelenses e ocidentais, algumas excelentes. É pena que a ampla obra de escritores e estudiosos palestinos não seja melhor utilizada por ele. Mas com tantas outras grandes qualidades do livro, minha queixa é bem pequena.

Tradução de Clara Allain

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