São Paulo, terça-feira, 31 de maio de 1994
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O dia D

JOSÉ SERRA

Desde que estou no Congresso, raramente houve um dia tão importante e ao mesmo tempo tão incerto como hoje. Logo mais, à tarde, os deputados e senadores decidirão se deixam ou não uma "janela aberta" para que se reforme amplamente a Constituição no próximo ano. Se o resultado for negativo, o próximo presidente terá as mãos amarradas para firmar a estabilização de preços e, mais amplamente, para governar com eficácia o país.
De fato, é imprescindível mudar a Constituição em numerosos dispositivos. Basta lembrar o capítulo tributário que, atualmente, no contexto de abertura da economia, conspira abertamente contra a produção e o emprego domésticos. Além disso, a forma de mudar a Constituição é penosa e inviabiliza qualquer pretensão de uma reforma mais ampla no seu texto. Qualquer emenda constitucional deve enfrentar meses de reuniões de uma comissão especial da Câmara ou do Senado. Depois, se chegar intacta ao plenário, deve sofrer duas votações em cada uma dessas Casas e obter maioria de três quintos em todas elas, afora os famosos destaques, que obrigam que cada palavra ou trecho, se alguém desejar, também tenha de ser reafirmado pela mesma maioria por quatro vezes!
Quem invoca exemplos de outros países para justificar sua oposição à abertura de processos mais simples de reforma constitucional esquece o peso do elefante: a Constituição brasileira é a mais prolixa e detalhista de todo o mundo civilizado. Em matéria tributária, por exemplo, é inigualável em tamanho e frequência de pormenores.
Hoje é o último dia da revisão e, portanto, a derradeira oportunidade para se abrir a referida janela (ninguém imagina que esta poderia ser aberta mediante emenda normal no segundo semestre de 1994). As opções são duas: a) esticar a revisão até o ano que vem, por meio de um projeto de resolução aprovado por maioria simples do Congresso; b) aprovar emenda que fixe a possibilidade de uma reforma (com votações mais simplificadas) a cada dez anos, se o Congresso quiser e mediante referendo popular que ratifique (ou não) essa decisão. No ano próximo seria dispensável o referendo.
Não vou discutir aqui como se chegou a essas opções, nem seus eventuais defeitos políticos e jurídicos. Ambas têm recebido reparos. Mas, acima de tudo, é preciso assumir os riscos e escolher uma delas. A opção pelo nada significaria fechar as portas à reforma e acorrentar os braços do novo presidente.
Os principais adversários de uma decisão positiva são duas fantasias simétricas em torno de uma hipótese. Do lado do PT, teme-se que, sendo Lula eleito, o Congresso, de posse do instrumento de reforma constitucional, inviabilizaria seu governo. Do outro lado, o do PPR, teme-se que, sendo Lula eleito, o Congresso, de posse do instrumento de reforma, submeter-se-ia a Lula, fazendo mudanças constitucionais à imagem e semelhança do PT.
É fascinante como uma neurose política repentina, em torno de um suposto (e nada certo) resultado eleitoral e de supostos (e nada certos) comportamentos do Congresso, pode vir a causar um mal tão profundo ao país e ao futuro de nossa democracia. Que tal, hoje, logo cedo, distribuir uns 200 lexotans políticos dentro do plenário do Congresso? Menos neurose, mais racionalidade.

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