São Paulo, quarta-feira, 1 de junho de 1994
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Candidatura de FHC sofre de masoquismo

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Foi primeira página nos jornais da semana passada: Fernando Henrique Cardoso montado num lombo de burro, com um chapéu de couro na cabeça: o patético da situação só é menor do que o seu ridículo.
Trata-se, na verdade, de uma mistura entre as duas coisas. Estamos diante de um ridículo pungente, de um patético festivo. A palhaçada produz mal-estar. Fotografou-se um Carnaval incômodo, a que o candidato se submeteu.
Fernando Henrique de chapéu de couro! O cruzado do real, o d. Quixote burguês, travestido em Sancho Pança, abandona o elmo de Mambrino pelo chapéu de couro, monta no burrico do escudeiro e sorri, no triunfo da própria e esperada degradação. Talvez sejam as pessoas mais vaidosas as que mais se degradam, as que mais se submetem ao ridículo. A mascarada sertaneja de Cardoso surge quase como uma autopunição.
Josias de Souza, em artigo publicado nesta segunda-feira na Folha, roubou muito do que eu tinha a dizer. Nota que os candidatos procuram parecer o que não são: Lula, de paletó, palestra com empresários, enquanto FHC recobre o seu privilegiado cérebro com um chapéu de couro. Jogo de inversões que faz parte da lógica eleitoral.
Lula seria inimaginável tomando pinga com populares num bar da praça da Sé: o pavor à redundância o leva a fumar charutos com banqueiros, assim como FHC não ganha votos pedindo haddock no restaurante Nabuco, e sim comendo carne seca em Garanhuns.
O antropólogo Victor Turner, num livro já antigo ("O Processo Ritual", ed. Vozes), conta de que modo alguns chefes de tribo, antes de serem eleitos, têm de sofrer toda sorte de humilhações. São xingados, têm de refestelar-se na sujeira, antes de assumir o posto honroso que lhes foi prescrito.
Trata-se, por assim dizer, de uma vingança do homem comum. O candidato X é tão bom assim? Então, que se diminua, que piore. A campanha eleitoral é um rito de passagem; uma provação necessária, um antídoto prévio a todos os prazeres do poder. O mais democrático, na democracia, não é o sistema de decisões do governante, mas sim o que ele tem de sofrer antes de eleito.
Chapéus
O candidato do PL, Flávio Rocha, conta que o pior da campanha eleitoral é ter de comer buchadas de bode em toda localidade onde faz comícios. O horror à maionese, a indigestão de banquetes, faz parte do cotidiano de qualquer candidato. Sorrir sempre, abraçar convencionais; bem feito.
Na quantidade de sacrifícios e de ridículos que acompanha toda caravana eleitoral, há entretanto nuances a registrar. Por mais que tudo seja "eleitoral" ou "demagógico", há um mínimo de relação entre a aparência e a verdade, entre a farsa eleitoral e o sentido autêntico da candidatura.
Explico. Fernando Henrique com chapéu de couro é ridículo, porque o chapéu de couro não agrega significado à sua candidatura. A falsidade inerente a qualquer campanha eleitoral torna-se, neste caso, falsa demais.
Outros chapéus funcionariam melhor. Jânio Quadros, por exemplo, usava o boné de condutor de bonde. A coisa toda era farsesca e demagógica; mas combinava com o populismo do candidato, e de alguma forma sugeria a idéia de uma condução autoritária dos destinos da sociedade.
Uma vez, puseram um cocar de índio na calva de Ulysses Guimarães. Era ridículo? Sim, em parte. Mas de algum modo a idéia de cacique, de líder cego e benfazejo, combinava com o perfil egípcio, com a velhice oracular, com o treme-treme vocal, com a majestade vaga, com o olhar vazado e azul, com o poder não administrativo, mas puramente político, do velho líder peemedebista.
O contrário se deu quando o então presidente Geisel foi ao México. Meteram nele um sombrero. A carranca tecnocrata-militar do presidente autoritário sofreu a experiência ridícula de ser transformada em "mariachi", para alegria geral dos que o detestavam.
Masoquismo
O chapéu de couro em Fernando Henrique está mais para sombrero mexicano do que para cocar de cacique. É uma vingança, uma humilhação. FHC tem todas as razões do mundo para ser vaidoso. Já escrevi sobre isso: quem, no papel de intelectual brilhante, de bom de boca, de sedutor, teria a força de ser tímido e modesto?
Mas ele aprendeu muito, até demais, com a derrota que sofreu para Jânio na disputa pela Prefeitura de São Paulo. Tinha-se sentado, triunfante, antes das eleições, na cadeira do prefeito. Perdeu. O seu lado pimpão, pavoneante, teve de retrair-se. Ele tem certeza de que é o melhor. E, sem dúvida, intelectualmente, até politicamente, é mesmo o melhor.
Aí é que começam os problemas. FHC sofre de um masoquismo na sua candidatura. "Eu, que sou o melhor, perdi para o Jânio: logo, tenho de piorar". Mas ele piora falsamente, concedendo com chapéus de couro e com o PFL. Sua vaidade entra em penitência. Dá a essa penitência o nome de pragmatismo eleitoral.
Fernando Henrique experimenta a volúpia de não ser mais um intelectual qualificado; vinga-se ele próprio das pretensões que teve, rebaixando-as à atitude eleitoreira. "Vou ser melhor nisso do que o Covas", pensa nosso irresistível professor.
O grande ensinamento de Jânio foi o de fazer todas as falsidades, todas as palhaçadas, todas as demagogias surgirem como se fossem efeitos automáticos de sua própria personalidade. Jânio Quadros fez da estranheza, da idiossincrasia, do falar difícil, do sotaque esquisito, um instrumento de ampliação de votos.
O candidato que se humilha, que estampa no rosto o próprio desconforto de ser candidato, de entrar nessa baixaria que é ser candidato, não convence.
Lula pode participar de um seminário com banqueiros, mas continua suficientemente perseguido e idêntico a si mesmo para que se veja, em seus esforços conciliatórios e eleitorais, uma simples estratégia política, uma antecipação de suas atitudes de governo.
Brizola é tão ele mesmo que até seu apoio a Figueiredo e Collor passam batidos na opinião pública. Fernando Henrique acha que não pode ser ele mesmo. Com razão, aliás. Pois o eleitorado aceita melhor a arrogância de um Collor, que se comportou como alguém destinado a "mandar" –tinha a predestinação étnica e social para isso–, do que o frouxo populismo de quem é forçado a usar chapéu de couro.
Trata-se de uma espécie de vocação inconsciente para a mentira. O eleitorado não é tão idiota assim. Ou melhor, é idiota em outro código. Percebe, bem ou mal, o desconforto dos que não querem mostrar o que são (caso de FHC). Delira quando a falsidade, a hipocrisia, a mentira se explicitam com seus modos, quando a palhaçada assume conscientemente os riscos de ser idiossincrasia, quando a declaração do candidato é violentamente antieleitoral, quando agride o bom senso.
Jânio se elegeu –devo esta idéia a conversas com um amigo– pondo-se contra o bom senso: apostando na idéia de dividir, mais do que juntar, o eleitorado. Na imensa montanha de mentiras de Jânio, havia uma aparência de autenticidade, que se baseava no fato de ele não cortejar em excesso o senso comum, a média de opiniões do eleitorado.
Carecas
FHC não mostra aquilo que ele é de fato. Não mostra, tampouco, aquilo que ele é de mentirinha. A mentira de usar de chapéu de couro é "mentirosa" demais para dar certo.
Nesse ponto, o grande adversário de Lula nas eleições é Espiridião Amin. A excentricidade de sua careca, o infalível bom humor de suas declarações, a falta de mal-estar em sua campanha garantem-lhe a necessária estranheza, a dose certa de excentricidade, a maluquice, que faltam a FHC e Quércia.
Uma dose de loucura é necessária para eleger-se. Pressupõe um trato mais íntimo com o risco, com a inconsequência. Espiridião Amin é, nesse sentido, o único adversário à altura do PT.
Amin é um pouco como a seleção da Colômbia, com Higuita e Valderrama. A cabeleira absurda de Valderrama tem o mesmo efeito da careca feliz de Espiridião Amin. Sou ruim de prognósticos. Mas Amin e a Colômbia vão dar trabalho nos próximos meses.

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