São Paulo, quinta-feira, 2 de junho de 1994
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O fracasso da revisão

JOSÉ GENOINO
O melancólico fim da revisão, morte sem quórum, convida os espíritos reflexivos a uma análise sobre este processo. A primeira questão que vem à mente é sobre o porquê do fracasso. Alguns o atribuem à ação dos contras, outros, à omissão do governo, que estaria interessado apenas na aprovação do Fundo Social de Emergência. Terceiros creditam o fracasso aos superpoderes do relator Nelson Jobim ou à inconveniência da revisão em um ano eleitoral. Todas estas causas, de fato, podem ter contribuído para o malogro da revisão. Mas no meu juízo, são secundárias.
Duas outras causas tiveram um peso determinante na inviabilização da revisão. Embora o artigo 3º das disposições constitucionais transitórias não vinculasse a revisão à mudança do sistema de governo, é inegável que a derrota do parlamentarismo pôs um freio no movimento político e social por reformas democráticas.
A vitória do presidencialismo inaugurou um ciclo anti-reformista no processo político que está em curso no país. A proposta presidencialista foi, no essencial, uma proposta de conservação do "status quo" institucional e constitucional.
Esta conclusão é corroborada pelo fato de que não foram poucos os que justificaram a não-realização da revisão por não haver ocorrido uma mudança no sistema de governo. A vitória do parlamentarismo teria, necessariamente, impulsionado o movimento político e social no rumo das reformas.
A segunda causa do fracasso está relacionada com a ausência de uma maioria parlamentar, de uma hegemonia política clara, articulada em torno de um projeto constitucional e político para o país.
Esta crise de hegemonia –como já observei em outras ocasiões– se arrasta desde o fim do regime militar. O nosso sistema partidário e eleitoral é inapto em formar maiorias políticas. Ao contrário, favorece a pulverização político-partidária. O conteúdo frankensteiniano da nossa Constituição se deve, em grande parte, à fragmentação político-partidária e à ausência de projetos que operaram no interior da Constituinte. A falta de uma maioria articulada é visível também no atual Congresso.
A esquerda, é o mais provável, foi contra a revisão porque não se sentiu segura quanto à sua força para manter algumas conquistas já asseguradas e para promover outras mudanças.
A direita, sem um projeto de reformas definido capaz de unificá-la, também mostrou-se sem força para produzir mudanças em alguns pontos que considerava essenciais.
A centro-esquerda, que na Constituinte havia composto um campo com a esquerda, apresentou-se indecisa em face do seu deslocamento, nas alianças eleitorais, rumo à direita. Refiro-me ao PSDB.
Levando-se em conta tudo isso e mais a tradição política de não se fazer acordo entre campos opostos sequer sobre o possível, a revisão só podia terminar como terminou. O que prevaleceu foi a indecisão, a omissão e o comportamento errático de alguns partidos.
A pergunta que as indefinições do Congresso e dos partidos deixaram sem uma resposta clara é a seguinte: o atual equacionamento constitucional pode ser considerado, no fundamental, como estável, eficiente e mais ou menos duradouro para uma democracia e, portanto, capaz de prescindir de uma revisão constitucional?
A resposta afirmativa a esta indagação significa que as mudanças constitucionais devem ocorrer pelo processo normal de emendas, ou por um mecanismo constitucional de revisão com ocorrência em prazos elásticos.
A existência de uma fórmula permanente de emendas constitucionais é necessária e inerente às democracias modernas. Na nossa Constituição, ela está consagrada no artigo 60. Na verdade, esta fórmula foi o único mecanismo que restou para modificar a Constituição. E ele dificulta em muito a aprovação de qualquer emenda. Para a sua aprovação, a emenda terá de ser discutida e votada pela Câmara e pelo Senado separadamente, em dois turnos, e necessita de três quintos dos votos em cada Casa.
A incoerência dos partidos políticos fica evidente quando há um número razoável deles e de segmentos da sociedade que consideram que a atual Constituição não tem um grau suficiente de consolidação democrática e oferece dificuldades para a governabilidade. De Lula a Esperidião Amin, passando por Fernando Henrique e outros candidatos, os programas de governo propõem reformas constitucionais que dificilmente serão aprovadas pela fórmula do artigo 60.
Penso que a melhor saída teria sido a convocação de uma assembléia revisora exclusiva, podendo dela participar os partidos políticos e representantes da sociedade civil. Seriam excluídos da assembléia, contudo, os deputados e senadores. A revisão, assim, não sofreria as influências das inclinações corporativas do Congresso e nem das injunções da relação entre Congresso e governo.
Outra proposta, complementar a esta, estabelecia uma fórmula permanente para processos revisionais futuros. Apresentada por Nelson Jobim e defendida pela bancada do PT, a fórmula consistia no seguinte: de dez em dez anos poderíamos proceder a revisões totais ou parciais da Constituição, protegidos os princípios do artigo 1º, que trata dos fundamentos do Estado de Direito e os do artigo 5º, que trata dos direitos e garantias individuais. A realização da revisão seria submetida a um referendo popular autorizativo e as propostas seriam votadas em sessão unicameral pelo Congresso, em dois turnos, considerando-se aprovadas as que obtivessem o voto de três quintos de seus membros.
Esta proposta de auto-reforma, fundada numa concepção dinâmica de democracia na qual se estabelece o princípio de que as democracias são capazes de se adaptar às exigências do tempo sem necessidade de rupturas, infelizmente, nem sequer foi apreciada.
Para os que acreditam que as reformas democráticas das instituições são, em parte, condicionantes das mudanças sociais, o desfecho deste processo só pode ser decepcionante.

JOSÉ GENOINO NETO, 47, é deputado federal pelo PT de São Paulo. Foi líder do partido na Câmara dos Deputados (1991).

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