São Paulo, quinta-feira, 2 de junho de 1994
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Crônica de uma morte anunciada

ABRAM SZAJMAN

Creio que não há melhor referência do que o livro "Crônica de uma Morte Anunciada", do colombiano Gabriel Garcia Marquez, para ilustrar e fazer o registro de uma das inúmeras tragédias que se abatem sobre a nossa América Latina.
Tal como a personagem central da novela, também o trabalhador rural José del Carmen Alvarez Blanco teve prenúncios daquele dia aziago, um domingo de 1990, em que ele e mais 42 outras pessoas de Pueblo Bello, no noroeste da Colômbia, foram sequestrados e depois assassinados a mando de um fazendeiro, por conta de um roubo de exatamente 43 cabeças de gado, com a cumplicidade de forças policiais.
A morte se anunciara havia muito tempo, mas ele e os seus companheiros de infortúnio não conseguiram ler a escrita fina e tortuosa com que foi escrita sua sentença.
Acossados de um lado pela guerrilha que teria roubado o gado e de outro pelas forças cegas da repressão, era de se prever um dia a conjugação de fatos triviais que os levariam à morte absurda. É uma violência de extrema crueldade, que avilta a consciência humana e para a qual não há explicação senão a insânia. E se aqueles humildes trabalhadores foram tomados de surpresa é porque não conseguiram imaginar, como ocorre com todas as pessoas de bem, até onde poderia ir a perversidade humana. Mas os sinais foram dados.
Toda Pueblo Bello sabia quem era o fazendeiro Fidel Casta¤o, conhecido por Rambo em razão dos massacres que promovia. Todos sabiam de suas relações com obscuros grupos militares e paramilitares, dos mecanismos que figuras como ele costumam ter à disposição para escapar à Justiça e à lei e continuar impunemente o seu trajeto hediondo.
Relato este fato a partir de documentos que me chegaram às mãos –e que muito me impressionaram–, enviados pela Anistia Internacional como parte de uma campanha contra os desaparecimentos e assassinatos políticos ocorridos em diferentes partes do mundo, às vezes muito mais perto do que imaginamos.
Como representante de um empresariado que se sente responsável pelas questões sociais e como cidadão, confesso que muito me honrou ser solicitado pela Anistia para ajudar nessa causa, como deve honrar a qualquer pessoa digna a oportunidade de manifestar-se e de se alinhar junto àqueles que, exatamente, se dedicam à preservação da vida e da dignidade humana.
A morte política é sempre uma morte anunciada. Embora súbita, ela não nasce do descontrole repentino, das emoções fortes mas passageiras. Ela é demoradamente urdida, pacientemente tramada. Como são anunciadas as mortes que decorrem da miséria, do atraso e da violência que nasce dessa mesma miséria.
Creio não haver cidadão minimamente responsável neste país que não se escandalize ao saber de crimes como o de Puerto Bello. Creio não haver quem também não se escandalize com o assassinato de meninos de rua, com o crime da Candelária, e com tantos outros que apenas ocupam as manchetes dos jornais nos primeiros dias e depois são rapidamente esquecidos. Eram todos previsíveis. Estavam anunciados. O escândalo maior foi não impedir que se consumassem.
Neste instante, à nossa volta, inúmeras outras tragédias começam a ser escritas e anunciadas. Algumas já desde há muito se anunciam.
Envolvem pessoas anônimas, trabalhadores simples como José del Carmen Alvarez Blanco, desempregados que foram acuados para a linha divisória da marginalidade e que ainda resistem. Pessoas que não têm a quem ou a que recorrer senão à nossa consciência. Enviam-nos pequenos e insistentes sinais a todo momento.
Cabe a cada um de nós fazer a leitura diária dos jornais, a leitura minuciosa e paciente dos humores do tempo e das pessoas, para não deixar passar esses sinais terríveis, às vezes insignificantes, com que essas tragédias são anunciadas.

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