São Paulo, sexta-feira, 3 de junho de 1994
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Sartre envelhece como herói e suicida

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Em 1968, a França tornou-se o foco de uma ampla revolta estudantil, de cunho ultra-esquerdista. Mais ou menos à essa época, alguém sugeriu ao chefe de Estado (o general De Gaulle) que prendesse o filósofo Jean-Paul Sartre, um dos animadores do movimento. "Não se pode prender um Voltaire", respondeu o general.
A figura de Jean-Paul Sartre corresponde, no século 20, à de Voltaire no século 18. Mais do que um filósofo, puro especialista nas tecnicidades do pensamento, Sartre reeditou a função iluminista do pensador crítico, do homem público, do livre pensador, do "philosophe", como se dizia no século 18 a propósito dos intelectuais sem papas na língua.
Sartre tornou-se conhecido de pessoas que nunca leram seus livros. Suas declarações, seus erros e atitudes políticas, suas polêmicas (com Raymond Aron, com Camus) viraram assunto para a imprensa.
Ganha importância, tendo em vista a trajetória pública de Sartre, o volume que a editora Ática acaba de lançar, "Em Defesa dos Intelectuais". Trata-se de três conferências que Sartre proferiu no Japão, em 1965.
Era uma época em que Sartre viajava bastante. Iugoslávia, China, Brasil, Cuba –ele revestia sempre de brilho radical francês os experimentos terceiro-mundistas. E certamente compensava o declínio de sua influência nos meios filosóficos parisienses; na década de 60, o existencialismo sartriano já conhecia a cruel experiência da superação.
O leitor de "Em Defesa dos Intelectuais" se surpreende, em primeiro lugar, com a "velhice" do texto sartriano. Tudo é questão de "engajamento", de superar "ilusões pequeno-burguesas" na luta contra o "colonialismo" e o "imperialismo". O jargão da esquerda em 1965.
Mesmo em suas fórmulas mais engajadas, mais esquerdistas, Sartre é um esteta, um preciosista. E seria o caso de ver se a sua defesa do "engajamento", se sua inteligente imposição de compromissos políticos, se sua entrega à militância, não é acima de tudo uma decisão estética, um "ato gratuito" à moda surrealista, um "imoralismo" à moda de Gide, um heroísmo à moda de Malraux.
O outro lado da moeda, neste livro, é que Sartre se entrega a uma prosa puramente instrumental, nada artística, poucas vezes brilhante. E, com isto, não só se entrega à pura defesa do esquerdismo intelectual, como esclarece pontos significativos de sua própria atitude.
Sartre começa, tipicamente, a investigar a situação do "homem de letras", do professor universitário, do cientista, do "pensador". Percebe, nessa situação, um estado de coisas contraditório.
O cientista, o filósofo, o intelectual em suma, vive em uma dupla condição. De um lado, sua atividade tende a um saber universal. Está vocacionado a uma descoberta da verdade, é necessariamente crítico diante do estado de coisas atual, dirige-se à descoberta científica, coisa desagradável ao poder burguês.
Sartre distingue o bem-estar, o prestígio que cercavam os "philosophes" do século 18, com o dilaceramento vivido pelos intelectuais nos séculos 19 e 20. Voltaire era um deus para a burguesia pré-revolucionária, pois encarnava uma idéia de universalidade.
Ou seja: quando defendia os direitos humanos, quando contestava o fanatismo religioso ou o direito divino dos reis, inscrevia-se num movimento que seria, afinal, vitorioso: a revolução burguesa. Podia traduzir, em termos de "Razão Universal", em palavras com maiúsculas como por exemplo "Liberdade", "Razão", "Tolerância", os interesses de uma classe –a burguesia– a qual estava ligado.
Foi o auge da presença dos intelectuais na história francesa. Depois, tudo se complicou. Pois o impulso crítico do pensamento, a vontade de "ser do contra" chocaram-se com um sistema político em que, ao contrário, "tudo estava bem"; em que a ganância, a repressão sobre os populares, o domínio de classe, eram vistos como "coisas naturais".
A partir desse momento (1848, em particular), o intelectual tornou-se aquilo que é até hoje: um estraga-prazeres, um crítico. Não é por acaso que, por volta dessa época, Tocqueville responsabilizou os intelectuais pelos excessos da Revolução Francesa.
O intelectual, diz Sartre, é aquele que mete o bedelho onde não é chamado. O que dá palpites em uma civilização regida pela idéia de competência técnica.
A primeira vez em que o termo "intelectual" foi usado, no sentido que conhecemos hoje, foi por volta de 1890. Dirigidos pelo escritor Émile Zola, muitos "intelectuais" protestaram contra a condenação injusta de um oficial do exército francês por traição. Era o "caso Dreyfus": Dreyfus era judeu e foi acusado de passar documentos de Estado aos alemães. Terminou preso, mandado para a Ilha do Diabo, colônia penal francesa no Caribe.
O romancista Zola provou a inocência de Dreyfus. Escreveu um célebre panfleto, "J'Accuse", levantando o caso.
Um célebre e respeitado crítico literário, Ferdinand Brunetière, estranhou a atitude de Zola. Disse mais ou menos o seguinte: "Um coronel do Exército não tem o direito de dar palpites sobre os versos de um poeta. Por que um escritor pode dar palpites sobre decisões da Justiça militar?"
Os "intelectuais" franceses, Zola à frente, se davam ao direito de intervir sobre o cenário político, mesmo sendo escritores, homens de ciência, filósofos.
No livro "Em Defesa dos Intelectuais", Sartre apóia essa atitude. A rigor, o "intelectual" é aquele que mete a colher onde não é chamado. Age como cidadão. Mais do que isso, está respondendo ao "universalismo" de suas atividades –busca da verdade científica, dignificação do homem–, contra o "particularismo" de sua situação profissional –funcionário do governo e da universidade, pesquisador em uma grande empresa etc.
Muito bem. O intelectual é aquele que dá palpites fora de sua "especialidade". Filósofo, apóia o regime cubano. Linguista, como Chomsky, denuncia os crimes americanos no Vietnã.
Mas as coisas não são tão simples assim. E o livro de Sartre, "Em Defesa dos Intelectuais", talvez seja sinal de dificuldades que, de 1965 até hoje, só aumentaram.
Antigamente, os intelectuais podiam engajar-se em uma defesa clara e sem problemas dos direitos humanos, da democracia, da luta contra a opressão.
Derivavam o poder de convencimento, que lhes era próprio, a partir de duas coisas: primeiro, a vocação para a universalidade do pensamento, a confiança ou razão abstrata, da qual eram portadores. Segundo, a habilidade retórica, o treino literário, o virtuosismo argumentativo de que dispunham, a fama que tinham conquistado.
Depois de Sartre, contudo, as coisas mudaram muito. Em primeiro lugar, em termos universais, como "Razão", "Verdade", "Progresso", foram protestados pelos próprios intelectuais. A inspiração de Nietzsche, traduzida em francês por Michel Foucault, desacreditou a força que essas palavras de ordem possuíam.
Em segundo lugar, o movimento capitalista fez dos intelectuais, mais do que nunca, seres especializados, técnicos. Uma coisa era Voltaire, "philosophe" capaz de questionar tudo. Outra coisa é Chomsky, da sua autoridade técnica como linguista, falar de política externa americana.
Os intelectuais sempre foram acusados de meter o bedelho onde não eram chamados. Mas a especialização científica e a domesticação institucional em que se envolveram tornam esse tipo de acusação mais pertinente do que antes.
A possibilidade de um pensador autônomo, ensaísta, "inteligência que paira com liberdade relativa sobre as coisas", no dizer de Karl Mannheim, diminuiu bastante na era do capitalismo administrado. Sartre surge, neste livro, como uma espécie de dinossauro heróico, oriundo de uma época em que os intelectuais eram livres.
Mas surge, também, como um dinossauro suicida –no sentido em que estava disposto a sacrificar a própria liberdade em favor de qualquer tipo de engajamento político.
Tragicomédia, aliás, de todos os intelectuais franceses neste século: o comunismo de Aragon, o pró-comunismo e depois o anticomunismo de Gide, o dreyfusismo de Proust e o antidreyfusismo de Brugetière, o fascismo de Maurras, de Drieu Le Rochelle, o gaullismo e o revolucionarismo libertário de Malraux, o existencialismo e as reservas colonialistas de Camus, há otários brilhantes para todos os gostos.
"O intelectual nunca tem razão", diz o filósofo Alexandre Kojève, comentando Hegel. A frase está citada num artigo de Paulo Arantes, que recomendo, na revista "Discurso" nº 21, do Departamento de Filosofia da USP.

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