São Paulo, sábado, 4 de junho de 1994
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O ataque dos párvulos

JOSUÉ MACHADO

"Filhotes também têm `ataques"', informa o título de um artigo num suplemento literário. Abaixo, o subtítulo: "Escândalos em público para chamar a atenção dos pais não são recursos apenas das crianças humanas".
"Crianças humanas" é o que se poderia chamar de pleonasmo vicioso (Pleonasmo é a repetição de uma idéia com palavras diferentes). São pleonasmos "subir para cima", "descer para baixo" ou "sentar-se com o bumbum". Equivale também a algo como"mulheres humanas", se não se estiver tentando ser machista perverso, o que seria uma quercice (ou malufice) inominável.
Só para lembrar, criança é sinônimo de ser humano de pouca idade, menino ou menina; párvulo. Párvulo vem do latim "parvulus" (menino, infantil, tolo), diminutivo de "parvus" (pequeno, criança, tolo, cretino). Ambos com o mesmo significado em português. Por isso, o ministro Rubens Ricupero, conhecido como Rubinho Papa-Hóstias desde seus tempos de párvulo como coroinha nas missas do bairro do Brás, em São Paulo, perdeu a paciência outro dia e chamou de "parvo" um crítico acerbo da política econômica. É o máximo de grosseria que se permite. E isso rendeu confissão e penitência. No trânsito, quando lhe "fechavam" o carro, exclamava: "Imprudente!" Mas para seus próprios botões. Já o Quércia tem vocabulário mais rico nessa área.
Parvoíces à parte, teria o redator imaginado que criança é qualquer filhote e que seria deselegância chamar os bebês de filhotes? Eles o são, como diria o Jânio, se estivesse por aqui. Na verdade, bastaria terminar o subtítulo em "crianças" e estaria tudo muito bem.
Falamos em bebê. Bebê também não se aplica a outros animais que não os seres humanos. Bebê, aliás, parece vir de "Bébé" (pronuncia-se bêbê), que era como chamavam Nicolau Ferry, um senhor de 70 centímetros de altura que viveu entre 1739 e 1764 na corte de Estanislau Leszczynski, rei de Lorena. Ficou famoso como o Anão de Estanislau. Hoje não seria politicamente correto chamá-lo de anão e sim de pessoa verticalmente prejudicada. Preju, para os íntimos.
Voltando às crianças, a palavra bebê, portanto, parece ter origem onomatopaica ou ser resultante de uma espécie de contaminação ideológica: do nanismo do preju à pequenez da criança foi um pulinho. O que importa no entanto é o subtítulo, o assunto de que escorregamos até aqui. Pode ser que o redator tenha tentado reforçar a humanidade das crianças, imaginando como teriam sido na infância seres como o Fiuza, o Maluf, o Antônio Carlos Magalhães, o Quércia, o Esperidião Amin. Terão sido crianças humanas, considerando a natureza atual delas? E aqueles outros rapazes do Congresso, hein?
Mesmo que tenha sido esse o raciocínio defensivo do redator ao escrever "crianças humanas", não se podem considerar tão seriamente as exceções quando se escreve um trabalho jornalístico, a ponto de ignorar ou mudar o sentido das palavras. Não há razão para duvidar de que a maioria das outras crianças tenha sido humana.
Só não foram crianças humanas com certeza, porque não foram crianças, Adão e Eva, já nascidos prontos para o que desse e viesse. Uma criatura irreverente diria que, não tendo sido crianças, foram parvos pelo tempo que perderam até que Eva entrasse em contato com a cobra tentadora.

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em Línguas Neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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