São Paulo, domingo, 5 de junho de 1994
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O leviano e os irresponsáveis

JANIO DE FREITAS

O economista José Cláudio Ferreira da Silva está sendo qualificado pelo ministro Rubens Ricupero como "leviano, propagador de pânico infundado", e tornou-se objeto de uma investigação desejada pelo ministro da sua área, Beni Veras, do Planejamento. Sua malhação pública é motivada por haver sugerido, também publicamente, que os assalariados façam estoques de gêneros alimentícios, para defender-se dos aumentos de preços que excedem a correção dos salários.
De saída, é evidente que os dois ministros é que estão em pânico. E não causado pelo economista, mas pela ferocidade das altas dos preços que eles e seus antecessores deixaram livres, em relação aos salários que seus antecessores e eles decidiram reprimir. O antes pacato Ricupero expôs, na mesma ocasião, a causa da sua exaltação: "Setores de ponta tentam embutir preços irreais. São uns irresponsáveis. É melhor pensarem cem vezes antes de reajustarem os preços, (...) se eu perceber, eu vou para cima da empresa".
É curioso: se o ministro ainda não percebeu, o que revelaria imperdoável falta de observação, de onde vêm a acusação aos setores de ponta, o qualificativo de irresponsáveis e a exaltação? Mas o ministro não está sozinho nem as palavras. Simultâneas às suas, eis as do presidente Itamar: "Só não baixei a medida provisória (contra aumentos injustificados de preços e abusos do poder econômico) contra esses irresponsáveis porque os presidentes da Câmara e do Senado prometeram colocá-la em votação na terça e quarta próximas", se necessário "alguns empresários irão para a cadeia".
O presidente e o ministro têm precedentes a apoiá-los. "Para enfrentar essas irresponsáveis especulações com preços, só há um único método: cadeia mesmo" –dizia na Comissão Mista do Congresso, em 8 de março, o então ministro Fernando Henrique. Era mais um eco das suas próprias palavras seis meses antes, quando já ameaçou com "cadeia os oligopólios que aumentaram seus acima da inflação". Ou mais um mês antes, quando prometeu a "paulada" que não veio.
É curioso: Fernando Henrique encontrou a inflação em 26%, nove meses depois deixou-a em 43%, ela continuou subindo, nada foi feito contra os preços que reconhecidamente a aceleram –e irresponsáveis são só os puxadores de aumentos? O governo sabia, como todo mundo, que a entrada da URV aceleraria os preços, tanto que, na mesma Comissão do Congresso, Fernando Henrique dizia também: "Estamos abrindo espaço para os empresários negociarem seus preços pela média dos quatro últimos meses do ano passado. Se não houver essa negociação, o governo vai arbitrar a conversão".
Não houve as tais negociações com base nos quatro meses finais de 93. O resultado não podia ser outro: ao final do seu primeiro mês, a URV, e com ela os salários, ficaram abaixo da elevação dos preços. Ela, com 43,26%; o INPC-E do IBGE, que mede o custo de vida das famílias que ganham de um a oito salários-mínimos, saltando de 39,47% em fevereiro para 45,18% em março. A URV conseguia o maior índice de inflação desde o governo Sarney. Bela safra de aumentos: pelo INPC do IBGE, 50% no sal e condimentos, 64% nas hortaliças e legumes, 65% nos tubérculos, 69% no pescado, 91% nos cereais, só o feijão mais de 150%. E os salários corrigidos em 43%.
Entrou abril, maio passou –e o governo, nada. Diz agora o presidente que "o governo pode perder a batalha do plano", derrotado pela voracidade dos preços. O economista do IPEA é, porém, "leviano, irresponsável". Sua proposta pode ser polêmica por considerarem muitos que as compras para estocar estimulariam mais aumentos. Mas fazer algum estoque não é, necessariamente, insensatez. As compras com preços novos são pagas com salário "corrigido" pela inflação velha, do mês anterior. Ou seja, todos os dias os preços sobem, e o dinheiro disponível é o mesmo e já é recebido com defasagem. Logo, antecipar compras é um modo de esticar o dinheiro.
A proposta do "leviano, irresponsável" não é sequer original. Imediatamente antes do lançamento da URV, o assessor especial do ministro da Fazenda, Edmar Bacha, foi confrontado com o problema de que "a inflação em cruzeiros reais vai se acelerar (com a introdução da URV) e a proteção da URV acaba no momento em que o trabalhador recebe o salário". Qual seria a saída? Resposta de Bacha como registrada por Míriam Leitão: "Ele sugeriu que os trabalhadores corram para os supermercados".
A resposta de Bacha também foi pública. Mas em cima dele não houve malhação de ninguém. O governo não estava em pânico pelo que não fez e não faz.

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