São Paulo, domingo, 5 de junho de 1994
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Fábricas de linguiça

RICARDO SEMLER

Prometi para a patroa que me comportaria no próximo artigo, nada de meter o pau. Mas, como ela não lê meus artigos, se vocês não contarem não há como ela saber. O fato é que fizemos um programa cultural no sábado passado, indo primeiro à Bienal, e depois ao Municipal para ver a Orquestra de Filadélfia. Lembrei da Frigor-Eder, aquela empresa que fazia salsichas e linguiças (quando crescer quero ser salsicha). Para começo de conversa, o prédio da Bienal, além do estado indigente de conservação, trouxe à tona o fato de que arquitetura genial é aquela que resiste à história. Esse edifício não resistiu e já demonstra um estilo equivocado e anacrônico, condenado ao modernismo auto-enganado. Já se sabia que o Niemeyer havia cabulado as aulas de ventilação e conforto ambiental, mas parece que não foram as únicas.
A exposição, porém, tinha um grande mérito: combinava com o prédio. Anacrônica, com cinco quilômetros que caberiam em 500 metros, era uma justaposição simplória, mais parecendo uma exibição de realizações de um governo passado. Repetições de outras bienais, escolha indefensável de muitas obras de uns poucos, e poucas obras de uns muitos. Claro que havia uma quantidade interessante de grandes obras, mas eram poucas para tanto estardalhaço. A pretensão de fazer uma revolução na Bienal passou ao ramo da piada. A Bienal internacional já não é considerada de importância no resto do mundo –esta então nem mesmo nos arredores do Ibirapuera.
À noite veio a consagração de nosso subdesenvolvimento. Tendo lido nos jornais que a orquestra estava maravilhosa, resolvemos rumar ao Municipal, apesar das notícias de que a lotação estava esgotada. Dentro, a tradicional configuração das badalações paulistanas: aquele terço de homens que havia recebido ingressos de graça retribuindo com terno e gravata, e um terço do teatro vazio. E aí pintou a Frigor-Eder. Tá certo que nos anos 60 a Orquestra de Filadélfia, sob a regência do elegante e perene Eugene Ormandy, constava entre as dez ou quinze melhores do mundo. Desde a saída dele, porém, ela nunca mais encontrou seu rumo. Passou por lá o Ricardo Muti, um perdido que em nada ajudou a nau sem rumo. Agora, nas mãos prussianas do Wolfgang Sawallisch, procura um norte. Sem muito sucesso, demonstrado pelas broncas discretas aos músicos e erros crassos do trompetista. Mas o pior foi o programa, que lembrou a Bienal. Misturaram Mozart para aplacar os quadrados, Mussorgski para os pseudo-moderninhos, e, pasmem, West Side Story para o verdadeiro público de Terceiro Mundo –os que frequentam a Broadway. Um programa displicente e paternalista, para nativos selvagens. Só faltou o bis consistir de Fantasma da Ópera. Não é preciso dizer que o mais aplaudido foi mesmo o West Side Story, ficando em segundo lugar o Mussorgski, que mais parecia o 1812 do Tchaikovski, faltando só o canhão.
A vida cultural paulista continua, tal qual o fraquíssimo e artificial filme do Bertolucci, "O Pequeno Buda". Fala-se muito, mas ainda é tudo terceiro mundo. Ao invés de dar valor ao que o Brasil realmente tem de original, e não é pouco, fica-se enchendo linguiça, com Bienaiscoxas e música de fanfarra. Haja Frigor-Eder.
Em tempo: viajo de novo, correndo o risco de ser despedido desta boquinha, mas prometi comprar um notebook que mande fax por telefone público, para fazer jus ao meu salário. Na próxima...

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