São Paulo, domingo, 5 de junho de 1994
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Dois pesos e duas medidas

JUNIA NOGUEIRA DE SÁ

Em várias destas colunas de domingo já escrevi que a Folha pratica, aqui e ali, "fernandohenriquismo" em seu noticiário. O fenômeno não é recente -data da época em que o candidato era ainda ministro da Fazenda, mas já dava sinais de que poderia disputar o Planalto. É inegável que a Folha tem simpatia por Fernando Henrique-ele-mesmo, e por seu ideário. A aproximação entre ambos tem uma longa história que o leitor do jornal certamente conhece. Mais: quem já leu pelo menos dez editoriais desta Folha sabe que há muito mais identidade entre o que pensam o jornal e FHC do que entre o jornal e Lula, para ficar em um único exemplo. (Na verdade, há muito mais coincidências entre FHC e a imprensa em geral do que entre Lula e essa mesma imprensa, e o "fernandohenriquismo" não é fenômeno isolado na Folha ).
Ocorre que a Folha é um jornal apartidário, faz questão desse rótulo e pretende chegar assim às urnas -o que é louvável. Até o momento em que escrevo esta coluna, nada nem ninguém faz supor que a Folha vá se permitir apoiar um candidato às eleições, ainda que esse apoio se manifeste e fique restrito ao único espaço em que seria tolerável -um editorial. O leitor parece saber e acreditar nisso, mas volta e meia tem cobrado explicações da ombudsman acerca do "fernandohenriquismo" da Folha . É hora de o jornal se preocupar seriamente com isso, se não quiser arranhar sua credibilidade junto ao (e)leitorado.
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Se o leitor ainda tem guardado seu exemplar do jornal de quinta-feira, abra na pág. 1-4. Ressalte-se que essa página, a primeira do corpo mesmo do jornal (as anteriores têm os editoriais, colunas, artigos e cartas dos leitores) é das mais nobres da edição. A manchete está ali, para ser vista: "FHC afirma que vai evitar ataques aos adversários - Tucano faz campanha no Rio e prometeu prestigiar o norte fluminense". O noticiário que se segue descreve a visita a três cidades do Rio de Janeiro, quando FHC foi até beijado por uma eleitora e chamado de "bonitão" por outra. Sem qualquer alarde, há ainda a informação de que FHC chegou a Campos (RJ) num jatinho, e que fez um comício usando o equipamento de som "cedido de graça" por um empresário de bailes funk. O único toque, digamos, crítico de toda a página está no chapéu (aquela palavra ou expressão que fica acima do título): "Retórica".
Cinco páginas adiante (quatro para quem recebe a edição nacional), o noticiário sobre candidatos em campanha prossegue com a manchete "Lula usa segurança amadora em campanha - Candidato não pede ajuda à PF e emprega ex-PMs expulsos da corporação - bêbado avança aos pés de petista". O chapéu dessa página, o leitor pode conferir, é "Descaso". O noticiário, crítico em relação à coordenação da campanha petista, diz que Lula usou uma segurança "eclética e falha" nas andanças por Brasília, e que não fez requerimento para ter a companhia dos quatro policiais federais a que todo candidato à Presidência tem direito.
Vai além: diz que a segurança de Lula "chegou a agredir o palhaço Pirulito" e que seu assessor de imprensa empurrou três fotógrafos, sendo que um deles (o jornal não dá detalhes) machucou a perna. Revela ao leitor que Lula usou uma caminhonete emprestada em Brasília, e que esse empréstimo só poderia ser feito mediante a troca por bônus, como manda a lei eleitoral, porque representa (diz o jornal) "despesas com transporte".
Se o leitor prestou atenção, percebeu que o jatinho de FHC não foi questionado pelo jornal como "despesas com transporte", nem sua segurança foi checada (o jornal sequer cita quantos homens acompanhavam FHC na caminhada que fez pelas cidades). Ao contrário do "bêbado" que, segundo a Folha diz ter ouvido de um assessor, "se estivesse com uma arma, poderia ter ferido Lula gravemente", a eleitora que beijou FHC não representou perigo para a Folha (e se ela estivesse armada, pergunto eu?). E há ainda o aparelho de som "cedido de graça" ao candidato do PSDB. Para FHC, a Folha tem outra interpretação da lei eleitoral, ao que parece.
O jornal usa dois pesos e duas medidas, e não é de agora, quando fala de FHC e de Lula. O que escrevi aqui é apenas um exemplo, mas baseado nele o leitor pode encontrar muitos outros em quase todas as edições da Folha (e do restante da imprensa). O "fernandohenriquismo" se manifesta em títulos mais generosos, coberturas menos ácidas, na cobrança menos estridente. Não fosse FHC ter posado para a foto em que aparece ridículo sobre um jegue, ou sua frase infeliz se dizendo "mulatinho" de "pé na cozinha", estaria sendo ainda mais poupado pela mídia. Se alguém andou atrapalhando a vida do candidato FHC nos últimos dias, foi ele mesmo. Impediu que a imprensa continuasse mostrando sua imagem como a do sábio (e elegante) professor que nunca erra nem uma vírgula.
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Na sexta-feira, a Folha deu uma pequena reportagem em sua página 1-7 (pode procurar, leitor) informando que o Tribunal Superior Eleitoral, sem verbas, não está conseguindo cumprir a lei eleitoral que manda custear as despesas dos agentes federais que fazem a segurança dos candidatos. E, sem verbas, os candidatos estão sem segurança fornecida pela Polícia Federal. O jornal não ligou uma coisa à outra, e não disse ao leitor se essa era a verdadeira razão de Lula estar desacompanhado em Brasília. É ou não ter dois pesos e duas medidas para tratar a mesma notícia?
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Na mesma sexta-feira, em sua página 1-7, o jornal voltou a tocar no assunto da caminhonete emprestada a Lula para cobrar do candidato o respeito à lei eleitoral. Teve o cuidado de informar que os jatinhos usados por FHC estão tendo as contas devidamente "penduradas" para quando os bônus eleitorais chegarem ao PSDB. De novo, dois pesos e duas medidas.
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Se isso não é "fernandohenriquismo", caro leitor, que nome você sugere?

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