São Paulo, domingo, 5 de junho de 1994
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Trânsito é microcosmo de nossa sociedade

EDUARDO GIANNETTI DA FONSECA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Erramos: 07/06/94
Por falha de digitação, houve um erro no 9º parágrafo deste artigo. O texto correto é, " ... O corficiente de mortos no trânsito chega a 23,9 para cada 100 mil habitantes por ano em São Paulo. O mesmo coeficiente atinge a marca de 8,5 por 100 mil em Nova York, 7 em Londres e 3,5 em Tóquio".


Trânsito é microcosmo de nossa sociedade
Em qualquer país do mundo, o sistema de trânsito é um formidável laboratório de psicologia e interação social. Ao tomar uma condução, dirigir seu automóvel ou simplesmente caminhar a pé na calçada, o indivíduo ingressa numa rede complexa de relações humanas.
O trânsito é o "mundo da rua" por excelência. Ao contrário do "mundo da casa", ele é um universo de convivência entre estranhos –um espaço público compartilhado por gente que não se conhece pessoalmente, que tem os seus próprios objetivos e que depende das ações e reações dos demais para alcançá-los.
Quando as coisas funcionam, o comportamento das partes é consistente com o bom desempenho do todo. Dadas as restrições materiais do sistema viário, os objetivos de cada um são alcançados no menor espaço de tempo, ao menor custo e com o máximo de segurança.
Há uma espécie de equilíbrio dinâmico dos egoísmos. Ninguém abre mão do que deseja ou precisa fazer –chegar ao trabalho, fazer entregas, ir às compras, buscar os filhos, passear ao léu ou seja lá o que for. Os fins não importam. Como disse o poeta, "tudo vale a pena quando a alma não é pequena".
O que importa é que tudo isso é feito sob a égide de certas regras impessoais de convivência. O resultado não é a harmonia do paraíso, mas também não é o caos sangrento do inferno. É a rua civilizada.
O problema, é claro, é que nem sempre as coisas funcionam. O comportamento das partes pode se combinar de tal forma que acabe sacrificando e até mesmo arruinando o desempenho do todo. Em vez do equilíbrio dinâmico da rua civilizada, o que prevalece é uma espécie de guerra surda e suicida dos egoísmos. O resultado é o que se vê.
Algumas estatísticas divulgadas recentemente pela Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) de São Paulo ajudam a visualizar a magnitude do problema. Na região metropolitana de São Paulo, os acidentes de trânsito matam em média oito pessoas por dia. São 13.000 acidentes por mês ou um a cada 3,2 minutos.
Para os jovens até 25 anos, o trânsito mata mais do que qualquer tipo de doença ou morte violenta –a cada 14,7 horas, um jovem entre 16 e 25 anos perde a vida no trânsito paulistano.
O que significam esses números em termos internacionais? O fosso agride. O coeficiente de mortos no trânsito chega a 23,9 para cada 100 mil em Nova York, 7 em Londres e 3,5 em Tóquio. Enquanto no trânsito japonês morre 1,1 pessoa por cada 10.000 veículos em circulação, no brasileiro este índice é de 6,3, ou seja, 5,7 vezes maior.
Dados como esses revelam uma série de coisas. A quem interessa essa carnificina brutal? Haverá alguém lucrando ou "levando vantagem" com tudo isso? O trânsito brasileiro mostra que nem tudo o que acontece de trágico na convivência humana é produto da vontade ou da intenção de algum indivíduo, organização ou grupo social.
Segundo informa a CET, apenas 4% dos acidentes em São Paulo são provocados por defeitos em veículos e 6% são devidos a falhas na infra-estrutura viária. Os outros 90% resultam de falha humana, com forte incidência de abuso do álcool entre os envolvidos em acidentes.
Seria ótimo, sem dúvida, poder sair por aí indignado, com o dedo em riste e o sangue fervendo nas veias, denunciando o "Consenso de Washington", as elites, os políticos corruptos e o neoliberalismo por mais este Vietnã larvar.
É gratificante exibir opiniões progressistas, dessas que fazem chover cartas de apoio no "Painel do Leitor". A verdade, porém, não dá cartas nem votos. A verdade ofende –"somos uns boçais".
O fato é que o caos sangrento de nossas ruas é o resultado conjunto de nossas próprias ações, embora ninguém individualmente tenha a intenção de produzí-lo ou sequer tenha poder para isso. A responsabilidade é a um só tempo de todos e de ninguém. Nós, motoristas, pais e jovens brasileiros, somos os piores inimigos de nós mesmos.
O poder público, é certo, faz parte do show. A punição dos infratores é feita de forma errática e ciclotímica. Espasmos de furor persecutório pontuam vastos interregnos de permissividade e impunidade.
Não é só a construção de avenidas, barragens e estradas. Até a aplicação de multas no Brasil obedece aos caprichos de um prefeito e ao calendário eleitoral.
Mas a grande vedete do espetáculo é a sociedade civil. O motorista brasileiro é o "homem cordial" de Sérgio Buarque de Holanda ao volante: "Cada indivíduo afirma-se ante os seus semelhantes indiferente à lei geral, onde esta lei contrarie suas afinidades emotivas, e atento apenas ao que o distingue dos demais, do resto do mundo... A personalidade individual dificilmente suporta ser comandada por um sistema exigente e disciplinador".
Cada motorista individual busca o que é melhor para si, o que é natural. Mas, como as regras de interesse comum –o mínimo legal da convivência civilizada– são amplamente desrespeitadas, todos terminam vivendo em situação bem pior do que poderiam viver. O todo nega, frustra e faz literalmente picadinho da ambição das partes. É o paraíso (infernal) dos tolos.
Na via pública, como na vida pública, o cidadão se arvora, com a naturalidade de um Lula-Bisol, em árbitro da lei. Munido de um austero e irretocável sentido de justiça, ele obedece as leis de trânsito que considera justas e passa por cima daquelas que lhe parecem arbitrárias, ociosas ou ilegítimas.
Seus pecadilhos, já que ninguém é de ferro, são ações triviais e inocentes perto do que fazem os PCs, os Robertos Marinhos e os barões do Orçamento. Não se deve confundir o público e o privado...
A rua brasileira é maior que a nossa violência cordial. Mas ela seria bem melhor sem ela. No fundo, tudo se passa como se cada indivíduo fosse, aos seus próprios olhos, o centro do universo. O único problema é que, para todos os demais que também estão na rua e são movidos por paixões prementes, ele é apenas uma parte insignificante dele.

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