São Paulo, domingo, 5 de junho de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Luís 14 inventou o teatro do poder

'A Fabricação do Rei', de Burke, é lançado no Brasil

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA FOLHA

Luís 14 foi exemplar na construção da figura do governante que se exibe em espetáculo. Foi o primeiro chefe de Estado moderno a tornar sistemático um trabalho de propaganda em torno de sua figura, sabendo que uma sociedade menos cristã que a medieval teria de usar meios de controle das consciências diferentes dos que a religião antes geria.
É por esta via que Peter Burke escreve seu "A Fabricação do Rei". Deixa claras a dívida com o sociólogo alemão Norbert Elias, o pioneiro no estudo político dos costumes mas, se usa a lição do autor do "Processo Civilizador" (ed. Jorge Zahar), enriquece-a –e muito.
Luís 14 é o inventor da propaganda moderna em matéria política. Antes, é claro que os monarcas faziam propaganda –como Elton mostrou para Henrique 8º da Inglaterra– mas esta era mais simples, não indo muito além de um misto de censura às opiniões dissidentes e de controle sobre os púlpitos.
Já Luís 14, tendo que enfrentar uma nobreza turbulenta, que em sua menoridade ainda tentou uma revolta contra o trono (a Fronda), consegue dominá-la pela invenção, a um só tempo, da propaganda, da etiqueta e da corte.
É certo que todas estas existiam, antes do Rei-Sol –mas, com ele, mudam de papel. Os costumes são regulados com novo vigor. Por um lado, reprimem-se os duelos –que violam o monopólio estatal da justiça– e se consagra a faca de ponta redonda, que só presta para comer, não servindo mais para matar o vizinho à mesa.
A vida fica mais pacífica. Mas isso não é só repressão, é também prazer. Como diz, ao rei, o conde de Wardes, que estivera banido da corte por alguns anos: "Longe de Vossa Majestade a vida não é só infeliz, é ridícula". A corte pode não ser uma festa, mas não há lugar em que as vaidades sejam mais bem organizadas, a seu serviço, pelo poder.
Burke não se contenta, porém, com este quadro, afinal de contas bem conhecido de quem leu Elias ou outros estudiosos. Sua novidade está em integrar elementos novos em sua análise. Mostra como Luís não era só a corte, havendo uma série de agências que faziam sua propaganda junto aos distintos meios sociais e mesmo no estrangeiro.
Aponta os vários "media" de que ele se servia, analisando por exemplo as medalhas que cunhou, até mesmo para celebrar os bombardeios a que submeteu Argel, Gênova ou Hedelberg. E, os capítulos que prefiro, analisa a recepção a essa propaganda (que com o tempo, a velhice e as derrotas foi-se tornando cada vez mais reticente) e compara-a à de outros reis da Europa, sobretudo os escandinavos, mais "demóticos" (quase diríamos hoje: populistas), que iam à feira e conversavam com o povo.
Com isso chegamos a duas idéias básicas que norteiam Burke. A primeira é de estratégia. Se a propaganda é meio de assegurar a submissão ou o assentimento a um poder, há porém vários modos de efetuá-la. Pode ser, como Luís 14, pela glória, impressionando os súditos com a vitória, o prestígio, a grandeza do rei. Pode ser alardeando a proteção, num modelo paternalista, que tutela o povo. Entre a grandeza distante e o demótico quase populista, há vários modos de conseguir o consentimento emocional a uma política.
A segunda idéia é que não cabe opor a retórica do Rei-Sol, por exemplo, a uma verdade ou ciência mais moderna, como se em nossos tempos a democracia, a razão ou a liberdade de imprensa eliminassem os recursos de linguagem utilizados para seduzir os homens em política.
Aliás, em entrevista que fiz com Peter Burke sobre este livro ("Revista USP" nº 20), ele, que conhece bem nosso país, lembra como o presidente Collor (e também George Bush) usava a imagem do esporte para ter legitimidade política ("Não sei se ele continua seu `jogging' depois que a câmara pára de filmá-lo...").
Nossa sociedade talvez ainda esteja na mesma galáxia cultural inaugurada por Luís 14, a do governante que se dá em espetáculo para melhor dominar seu público. Não deixa de ser interessante, acostumados que estamos a considerar o Antigo Regime como um tempo remoto, objeto só de nossa curiosidade, perceber que em algum ponto a fábula fala de nós. E que nossa sociedade continua marcada pela retórica e a teatralidade que Luís 14, 300 anos atrás, inventou.

Texto Anterior: CABRAL; AUTÓGRAFOS
Próximo Texto: Etiqueta era um ritual da dominação
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.