São Paulo, domingo, 5 de junho de 1994
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Etiqueta era um ritual da dominação

LILIA MORITZ SCHWARCZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Dizia Montesquieu que o esplendor que envolve o rei é parte capital de sua própria pujança. Mais do que um elogio, a consideração acima revela particularidades do poder monárquico, ou mesmo, a dimensão simbólica presente neste ou em qualquer tipo de poder público.
Seguindo essa pista, Marc Bloch, em ensaio pioneiro sobre as mentalidades, analisava o fenômeno do toque real –o caráter maravilhoso dos reis taumaturgos–, demonstrando como devia atentar antes para a espectativa coletiva do milagre do que para a verdade da cura em si.
Norbert Elias, por outro lado, acentuou a importância da etiqueta no interior do Antigo Regime, encontrando uma lógica que nada tinha a ver com o mero adereço, ou com a idéia da existência de vogas aristocráticas luxuosas e sem sentido.
Com efeito, essas e outras obras têm demonstrado como as vestes, os objetos, a ostentação e os rituais próprios da monarquia são parte essencial desse regime, constituem sua representação pública e, no limite, garantem sua eficácia. Como diz o dito popular "rei que é rei, não perde a realeza" e se a perde –digamos assim– é cada vez menos rei.
Não é por mera coincidência que se comentava, já na época, que Luís 16 jamais teria sido preso em Varennes se estivesse portando suas vestes reais. Ora, sabemos que não se faz a história do "se", mas o que esse tipo de explicação revela é que, pelo menos nesse caso, "a roupa faz o homem".
É desta figura pública, conscientemente construída, que trata o livro "A Fabricação do Rei", de Peter Burke. Seu objeto formal é a famosa personagem de Luís 14, o Rei-Sol, que reinou durante 72 anos e se transformou quase que em um emblema da monarquia absoluta européia, tão marcada pelo luxo e por demonstrações de riqueza.
Mas Peter Burke faz mais; revela como os monarcas foram os inventores do marketing político e que, nesse sentido, fizeram escola.
É por isso mesmo que Burke está mais preocupado com a interpretação do que com o acontecimento, procura o mito do rei e não sua realidade, privilegia a imagem em detrimento do homem. Vemos um Luís 14 envolto por biógrafos, artistas, artesãos, alfaiates, escultores, cientistas, poetas e historiadores; todos unidos com um só propósito: fazer do rei um exemplo público de glória, uma representação fiel de Deus na terra.
Elaborada tal qual um grande teatro, um teatro do Estado, a atuação do rei se transforma em performance; os seus trajes viram fantasia. Cuidadosamente esculpida, a figura do rei corresponde aos quesitos estéticos necessários à construção da "coisa pública": saltos altos para garantir um olhar acima dos demais, perucas logo ao levantar, vestes magníficas mesmo nos locais da intimidade; enfim, trata-se de projetar a imagem de um homem público, caracterizado pela ausência de espaços privados de convivência.
Tal qual um evento multimídia, o rei estará presente em todos os lugares; cantando em verso e prosa; retratado nos afrescos e alegorias; recriado como um Deus nas estátuas e tapeçarias.
Senhor de um ritual cujo controle era impecável, o monarca transforma seu exercício diário numa grande dramatização, equilibrando-se no poder por meio da concessão alargada e programada de títulos, medalhas e privilégios. Dádivas que carregam a imagem do líder, esses rituais de consagração da monarquia acabam ajudando a cultuar e estender a própria personalidade do rei.
Exemplo radical do exercício e da manipulação simbólica do poder, a realeza evidencia, com sua etiqueta, a importância do ritual na construção da imagem pública. Mesmo D. Pedro II, nossa versão tropical mais acabada da monarquia, não se furtou de apostar na eficácia desse tipo de modelo.
A farta distribuição de fotos da família real, o apoio, financiamento e incentivo a historiadores, biógrafos, cientistas, artistas e literatos; ou mesmo a insistência na divulgação de uma só imagem do Imperador –a conhecida e serena barba branca– fazem parte de uma lógica que encontra respaldo em práticas anteriores.
Enfim, a monarquia é um bom pretexto para a discussão dos vínculos entre política e manipulação do imaginário simbólico, ou mesmo para a verificação de como a política se faz com a lógica da "razão prática", mas também com a força de persuasão da "razão simbólica".
Afinal, foi Pascal quem concluiu que "as cordas que atribuem o respeito a este ou àquele em particular são cordas da imaginação". Prática de alguma forma datada, o ritual suntuoso da monarquia deixa ainda mais evidente como a propaganda e a política sempre mantiveram relações de estreita afinidade.

LILIA K. MORITZ SCHWARCZ, professora de Antropologia na USP, é autora de "O Espetáculo das Raças" (Cia. das Letras)

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