São Paulo, domingo, 5 de junho de 1994
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Guevara com o pé na estrada

Bariloche, Argentina
Decidimos ir a Bariloche tomando o caminho conhecido como dos sete lagos, por costear muitos deles antes de chegar à cidade. Sempre com o ritmo tranquilo da Poderosa, percorremos os primeiros quilômetros sem maiores aborrecimentos, à parte alguns problemas mecânicos de pouca importância, até que, alcançados pela noite, fomos obrigados a recitar a habitual historinha do farol quebrado numa queda para dormirmos numa casa à beira da estrada; "desculpa" útil, já que o frio da noite se fez sentir com insólita aspereza.
(...) Mas, ao retomarmos a marcha, notamos um furo na roda posterior, e ali começou uma tediosa luta com a câmera de ar: cada vez que a remendávamos, acabávamos furando-a na parte oposta, com o resultado de acabarmos com os remendos e sermos obrigados a esperar a noite no mesmo lugar no qual tínhamos dormido. Um colono austríaco, que na juventude tinha sido corredor de moto, lutando entre o desejo de ajudar colegas em desgraça e o temor diante da reação da mulher, nos deu hospitalidade em um armazém adandonado. No seu espanhol sofrível, contou-nos que naquela zona havia um tigre chileno.
"E os tigres chilenos são ferozes! Atacam o homem sem nenhum medo e têm uma enorme juba loira."
Quando fechamos a porta, descobrimos que ela só tinha a parte inferior, como uma baia para cavalos. Tínhamos colocado o revólver ao lado do meu coxim, para a eventualidade de o leão chileno, cuja sombra penetrava nossos pensamentos, decidir fazer-nos uma inoportuna visita.
Estava já alvorecendo quando fui acordado pelo rumor de garras que arranhavam a porta. A meu lado, Alberto estava retraído num apreensivo silêncio. Eu mantinha a mão crispada na pistola, com o cano levantado, enquanto dois olhos fosforescentes me fixavam, recortados contra a sombra das árvores. Como que impelidos por um salto felino, lançaram-se para a frente, e a massa escura do corpo ultrapassou a porta. Aconteceu qualquer coisa de instintivo, na qual os freios da razão se despedaçaram e o instinto de conservação apertou o gatilho: o estampido ricocheteou contra as paredes e chegou a uma janela com a luz acesa, de onde nos invocaram deseperadamente: mas o nosso silêncio intimidado tinha um motivo concreto, pressagiando a gritaria estentórea do colono e os gemidos histéricos da mulher sobre o cadáver de Boby, cão antipático e rosnador.

Chuquicamata, Chile
Chiquicamata parece o cenário de um drama moderno. Não se pode dizer que lhe falte beleza. Mas a sua á uma beleza sem graça, imponente e glacial. Quando nos aproximamos da região mineira, parece que o panorama todo se concentra no terreno aplainado para dar uma sensação de asfixia. (...) Nem mesmo um arbusto pode crescer naquela terra salitrosa, e os montes, expostos aos ataques do vento e da água, mostram os flancos cinzentos prematuramente envelhecidos pela luta com os elementos, sulcados por rugas que os fazem parecer mais antigos do que sua idade geológica real. Lá embaixo, quantos desses montes, que fazem escolta ao irmão mais célebre, escondem nas pesadas vísceras riquezas semelhantes às suas, esperando que os gélidos braços das pás mecânicas devorem seu ventre, com o habitual corolário de vidas humanas; as vidas dos pobres heróis esquecidos desta batalha, na qual morrem miseravelmente, entre as mil armadilhas que a natureza coloca em defesa dos próprios tesouros, sem outro ideal que o de obter o pão cotidiano.
O Chile fornece 20% da produção mundial de cobre, e neste período de incerteza pré-bélica, no qual tais materiais assumiram uma importância vital, pois são insubstituíveis em alguns armamentos, se desencadeou no país uma batalha de ordem econômico-política entre os que sustentam a nacionalização dos minérios, reunindo alguns grupos da esquerda e os nacionalistas, e aqueles que, baseando-se nos ideais da livre iniciativa, julgam ser preferível uma empresa de mineração bem administrada (ainda que em mãos estrangeiras) à incerta gestão que dela faria o Estado. No Congresso se registraram severas acusações contra as companhias que exploram as atuais concessões, sintoma de um clima de aspirações nacionalistas sobre a produção. Qualquer que seja o resultado do embate, seria bom que não fosse esquecida a lição dos cemitérios das minerações, levando-se em conta também que eles representam apenas uma pequena parte da desmesurada quantidade de pessoas devoradas pelos desmoronamentos, pela silicose e pelo clima infernal da montanha.

Cuzco, Peru
A palavra que mais que qualquer outra pode definir Cuzco é evocação. Uma impalpável poeira de outras eras se sedimenta em suas ruas, soerguendo-se em como magma de uma laguna lodosa quando se pisa em seu substrato. Mas há duas ou três Cuzco, ou melhor, duas ou três formas de evocação: quando Mama Ocllo deixou cair o cravo de ouro na terra e este penetrou-a totalmente, os primeiros incas compreenderam que ali era o lugar eleito por Viracocha como domicílio permanente dos seus filhos prediletos, que teriam assim abandonado o nomadismo para chegarem como conquistadores à sua terra prometida. Com os narizes dilatados pela ambição de novos horizontes, viram crescer o formidável Império, enquanto a vista atravessava a débil barreira das montanhas circundantes. E o nômade, que a contínua expansão tinha convertido em Tahuantinsuyo, fortificou o centro dos territórios conquistados, o umbigo do mundo, Cuzco. E assim surgiu, constrangido por necessidades defensivas, o imponente Sacsahuamán, que domina a cidade das alturas, protegendo os palácios e os templos da fúria dos inimigos do Império. Esta é a Cuzco cuja recordação emerge, dolorosa, da fortaleza devastada pela estupidez do conquistador analfabeto, dos templos profanados e destruídos, dos palácios saqueados, da raça embrutecida; é aquela que convida a erguer-se como guerreiros e a defender, com uma clava na mão, a liberdade e a vida do inca. Mas existe uma Cuzco que se vê do alto, destituindo as ruínas da fortaleza: aquela dos tetos de telhas coloridas, cuja doce uniformidade é interrompida pela cúpula de uma igreja barroca, que, descendo, nos mostra somente suas ruazinhas estreitas e as vestes típicas de seus habitantes e suas cores características; aquela que convida a ser um turista preguiçoso, a passar superficialmente, gozando a beleza de um plúmbeo céu invernal. E há também uma Cuzco vibrante, que mostra nos seus monumentos os valores formidáveis dos guerreiros que conquistaram a região, que se exprime nos museus e nas bibliotecas, nas decorações das igrejas e nos traços claros dos caudilhos brancos, que ainda hoje mostram o orgulho da conquista; é aquela que convida a empunhar a espada e, na sela de um cavalo de flancos largos e galope poderoso, rasgar a carne indefesa da multidão nua, cuja muralha humana se dispersa e desaparece sob os quatro cascos do animal. Cada um destes aspectos de Cuzco pode ser admirado separadamente e a cada um dedicamos uma parte da nossa permanência.

Extraído de "Primeiras Viagens", de Ernesto Che Guevar

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