São Paulo, domingo, 5 de junho de 1994
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Alemães mostram Brasil aos brasileiros

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Alemães mostram Brasil aos brasileiros
A 46.ª feira do livro de Frankfurt, Alemanha, que tem o Brasil como tema este ano, só acontece em outubro, mas já começou para alguns escritores brasileiros, desde 27 de abril último.
Por iniciativa de Haus der Kulturen der Welt (Casa das Culturas do Mundo, instituição sediada em Berlim), em parceria com a Câmara Brasileira do Livro, a Biblioteca Nacional do Brasil e o Instituto Goethe, 17 escritoores foram convidados a divulgar sua obra em visitas àquele país.
As atividades incluem leituras de trechos de obras publicadas (em português, com tradução simultânea para o alemão), seminários, simpósios e reuniões de trabalho com escritores alemães, agentes literários e editores, e se encerram no próximo dia 10 de junho.
O programa dividiu os escritores brasileiros, entre romancistas, poetas e autores de literatura infanto-juvenil (note-se a ausência de nomes do teatro), em três grupos que viajam pelas principais cidades alemãs, entre as quais Berlim, Munique, Colômbia e Hamburgo.
Para selar o evento, a Casa das Culturas do Mundo, juntamente com a Editora Babel, de Berlim, lançou em abril a antologia "Nachdenken uber Eine Reise Ohne Ende - Brasilien - Literarisch" (Reflexões sobre uma Viagem Sem Fim - Literatura Brasileira", org. de ute Hernanns e Kurt Scharf), com poemas, contos e ensaios dos autores brasileiros.
O primeiro grupo, composto por seis escritores - Deonísio da Silva, Haroldo Maranhão, Luiz Antônio de Assis Brasil, Luiz Vilela, Marcelo Rubens Paiva, colunista da Folha, e esta articulista que aqui escreve -, esteve na Alemanha em verdadeira rota de colisão.
Explico: conheceram-se, souberam alguns pela primeira vez da existência do outro, diante de um atento público alemão. Era a Alemanha mostrando o Brasil ao Brasil. Afinal, quem conhece Guido Guerra, Suzana Vargas ou João de Jesus Paes Loureiro?
Muito acadêmico ou jornalista da área de cultura desconhecerá metade desses autores. A propósito, foi o que demonstrou, em matéria sobre a feira de Frankfurt, uma das principais revistas brasileiras ("Veja" 25/05/94).
A matéria da revista sequer menciona o evento promovido pela Casa das Culturas do Mundo e a presença do segundo grupo de escritores na Alemanha, naquele momento. Entre eles, Ziraldo, Ana Maria Machado e Ruth Rocha.
Ainda que se discuta o valor, o "peso" literário dos já citados e dos outros escritores do programa e da antologia - afinal, que representatividade terão Domingos Pellegrini, Marina Colasanti e tantos outros? -, o fato é que à Alemanha interessa outra coisa.
Mesmo que o Brasil não saiba quem é fulano ou sicrano - também são parte da seleção os escritores Milton Hatoum, Renata Pallottini, João Moura Jr. e Moacyr Scliar, colunista da Folha -, a Alemanha saberá. Não é novidade que os alemães vêm há anos traduzindo literatura brasileira. Novidade é que nos sentemos nós, escritores brasileiros, e leiamos histórias para um público estrangeiro.
Para os alemães já não somos apenas o país do futebol, das mulatas e do Carnaval. Somos também o país da Amazônia a ser preservada, das crianças de rua assassinadas, do impeachment e... dos escritores de uma cultura essencialmente oposta à alemã.
Salada
Tudo indica que não haverá continuidade entre o programa de visitas de escritores brasileiros à Alemanha e a feira de Frankfurt.
A justificativa dos organizadores brasileiros é que, como não têm obras traduzidas para o alemão, estes autores não teriam representatividade. "Mas se o espírito da feira é o da descoberta", comenta o escritor Deonísio da Silva, "este critério é uma contradição inaceitável".
Em entrevista coletiva no último dia 01/06/94, o ministro da Cultura, Luís Roberto Nascimento Silva, confirmou que não poderão faltar na feira os brasileiros já traduzidos e conhecidos na Alemanha: Rubens Fonseca, Ignácio de Loyola Brandão, Lygia Fagundes Teles, João Cabral de Mello Neto.
A verdade é que nos batidores do poder burocrático literário está armada uma guerra surda, pela disputa de dinheiro e espaço de decisão. A feira de Frankfurt, no que toca à organização brasileira, resume-se a um projeto comercial.
A questão central, a representatividade dos escritores, é tratada como secundária. Não é à toa que a seleção de autores convidados ou com presença confirmada na feira, são uma salada incongruente, cheirando às vezes a forte "jabaculê".
Não é à toa também que um dos assuntos mais difíceis para os organizadores é revelar a origem das indicações. Quanto à lista de presenças confirmadas, "os autores não foram escolhidos pela CBL, são patrocinados por suas editoras ou outros órgãos privados", afirmou Alfredo Weiszflog, superintendente do comitê executivo do "Projeto Frankfurt" no Brasil.
Entre as presenças confirmadas estão o clássico casal Jorge Amado e Zélia Gattai, o não menos clássico casal Affonso Colassanti, o ilustre best-seller Paulo Coelho e estranhos casos de incógnitas absolutos como Ana Raquel, Angela Lago ou Leo Cunha.
O problema é que na cultura brasileira parece faltar uma comissão técnica que se assuma (porque existe, obscura), se sente à mesa e tenha a coragem de dizer: fulano presta, sicrano não presta. Ainda que literatura não seja futebol.
Enfim, o advento desta feira vem mostrar quem dá as cartas no mercado literário brasileiro. São todos, menos aqueles que escrevem as ditas cartas - os escritores que, também por uma contradição inerente à atividade, não compõem entidades que os representem de modo justo e desinteressado. De um lado, movem-se pesadamente os elefantes brancos da Academia Brasileira de Letras (ABL) ou da União Brasileira de
Escritores (UBE). De outro, saem na frente os grandões da indústria editorial.
Aguarda-se para o fim de junho, uma nova lista de nomes a ser apoiada pelo Ministério da Cultura, sob indicação de entidades como a UBE e o Sindicato Nacional dos Editores de Livro (Sinel).
Mas as feiras de livro não têm nada a ver com a essência do ato de escrever. São uma reunião estapafúrdia de eventos como esta de Frankfurt, que se intitula "Brasil Um Encontro de Culturas". Haverá de artes plásticas e paisagismo a mosaico e filatelia. Mas não haverá teatro. Haverá mosaico demais e escritores de menos.

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