São Paulo, domingo, 5 de junho de 1994
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Nas neblinas da memória

Juan Carlos Onetti criou uma obra envolta em sonho

ERIC NEPOMUCENO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nas neblinas da memória
Juan Carlos Onetti era alto e espigado, tinha 85 anos, escrevia a mão e passava a maior parte do tempo estendido na cama, envolto nas neblinas do tempoe da memória - a memória do vivido ou sentido, inventado. Morreu no dia 30 de maio, a última segunda-feira do mês.
Tinha sido internado num hospital três dias antes, mais magro e cansado que nunca. Morreu consagrado: estes últimos 20 anos, que Onetti passou na Espanha, serviram também para isso. Ilustre desconhecido para os brasileiros, há muito tempo ele era reconhecido pelos leitores da América hispânica - e sobretudo pelos escritores, sempre tão ávaros em reconhecimentos deste calibre - como um dos maiores da literatura deste século em nosso continente.
Chegou à Espanha em 1975, abatido e querendo tranquilidade. Vinha de uma temporada de horrores no Uruguai, primeiro num cárcere e depois num manicômio. Instalou-se em Madri, e lá ficou até o fim. Seu último livro, uma novela densa e tortuosa chamada "Quando yano importe", estacionou durante várias semanas nas listas dos livros mais vendidos na Espanha, do México e da América do Sul. O título abriga uma ironia dilacerante, bem ao gosto de Onetti.
Insônia
Há muitos anos, Onetti contou que, quando adolescente, costumava ir ao porto para ver os navios cargueiros que chegavam do outro lado do mundo, com nomes cujos significados ele não entendia. "Imaginava suas histórias", contou Onetti, "o que é a mesma coisa que dizer que as escrevia". Poucos escritores viveram, como ele, empenhados na certeza de que escrever e imaginar são a mesma coisa.
Desde sempre, foi dado a insônias cruéis. Levantava-se no meio da noite para rabiscar frases, imagens, temores. Assim é a sua literatura: sonhos (muitas vezes pesadelos) interrompidos para que Onetti pudesse escrevê-los, antes de tornar a mergulhar neles.
Sua obra está, toda ela, empregnada dessa atmosfera - nebulosa, renevoada - dos sonhos interrompidos. Seus personagens continuam sempre tentando, por inércia ou desespero, encontrar um sentido para suas vidas. Naquele que talvez seja seu melhor romance, "La Vida Breve" um personagem dá uma pista básica do mundo de Onetti: "O mau não é que a vida nos promete coisas que não nos dará nunca; o mau é que sempre as dá, e deixa de dá-las.
Picassos roubados
Na página quatro de sua oitava seção, o jornal "La Prensa", de Buenos Aires, publicou no primeiro dia de 1933 um conto chamado "Avenida de Mayo-Diagonal-Avenida de Mayo". O nome do autor - Juan Carlos Onetti - continuou aparecendo de maneira esporádica em outros suplementos e seções literárias de jornais de Buenos Aires e Montevidéu, mas só seis anos mais tarde uma modesta editora uruguaia, chamada Signos, publicou o primeiro livro do escritor: uma novela de 99 páginas, "El Povo". Este livro, aliás, foi impresso por uma gráfica de Paris, a Garamond, no dia 18 de abril de 1930 e trazia n capa desenhos de Picasso. A edição foi de 500 exemplares, dos quais só se tem notícia de três: um está na biblioteca do Chateau Mouton, do barão Philippe de Rotschild; outro está no Museu Oceanográfico e de Pesca de Hamburgo; e o terceiro repousava, até alguns anos, numa caixa de sapatos no fundo de um armário no apartamento de Onetti na avenida das Américas, em Madri.
Os desenhos originais de Picasso na capa são, na verdade, uma contribuição involuntária do pintor. Certo dia, Onetti e um músico amigo estavam num café de Paris quando viram Picasso nums mesa, sozinho e desenhando em guardanapos. Onetti e o músico sentaram-se com o pintor e, enquanto o primeiro declamava poemas de Rubén Darío e de Bécquer, o segundo surrupiou alguns dos guardanapos cobertos de traços e rabiscos que acabaram virando ilustrações de capa de livro. Coisas da vida: coisas de Onetti.
Santa Maria
Na década de 50, surgiu na literatura de Onetti seu espaço geográfico mítico e definitivo: a cidade de Santa Maria. Antecipando-se às cobranças óbvias e aos investigadores inevitáveis, Onetti comentou certa vez: "Eu morei muito tempo Buenos Aires e de alguma forma a experiência de Buenos Aires está presente no que escrevo; mas muito mais que Buenos Aires, está presente Montevidéu, a melancolia de Montevidéu. Por isso fabriquei Santa Maria: fruto da nostalgia da minha cidade. Fora de meus livros, Santa Maria não existe. Se existisse, eu certamente faria lá a mesma coisa que faço hoje: naturalmente, inventaria uma cidade chamada Montevidéu".
Ele dizia: "Soube descobrir as grandezas e misérias da vida em plena adolescência." Contava isso como quem antecipa que sua literatura estava absolutamente impregnada de todas as grandezas e misérias da vida. No mesmo "La Vida Breve", um personagem-chave, da obra de Onetti, Brausen, afirma: "alguma coisa repentina e simples ia acontecer, e eu poderia me salvar escrevendo". Onetti sempre soube que coisas simples e repentinas aconteceriam na sua vida e na vida de todos nós.
Viveu exilado do mundo. Nos tempos de Montevidéu, passou um período dirigindo as bibliotecas de um setor público que não tinha bibliotecas. Viveu sempre paixões avassaladoras e, quando não havia nenhuma, inventava ou lembrava. Foi um mestre exemplar. Escrevia a mão, e explicava: a caligrafia é mais lenta que a datilografia, mais lenta que as idéias, você é obrigado a sentir na mão cada palavra escrita. Assim Onetti pôs no papel contos absolutos e romances inatingíveis, como "El Astillero" e "Ls Vida Breve". Assim ele soube descrever com beleza inesperada e pungente as penitências e malezas da alma humana.
Nos vimos pela última vez há dez anos. De vez em quando, eu telefonava para Onetti. A última foi há uns seis meses. Perguntei como ele estava. "Aqui", respondeu. Tão triste como ele.

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